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O pensamento anarquista

category internacional | movimento anarquista | debate author Thursday April 03, 2014 23:15author by Érrico Malatesta Report this post to the editors

"Entre os anarquistas existem os revolucionários que acreditam que é necessário abater, pela força, a força que mantém a ordem atual, para criar um ambiente no qual seja possível a evolução livre dos indivíduos e das coletividades. E existem os educacionistas que pensam que só se pode chegar à transformação social, transformando antes os indivíduos, por meio da educação e da propaganda. Existem partidários da não-violência ou da resistência passiva, que evitam a violência ainda que seja para combater a violência. E existem aqueles que admitem a necessidade da violência, os quais se dividem, por sua vez, no que diz respeito à natureza, alcance e limites da violência licita."


O pensamento anarquista

Érrico Malatesta


Pode-se ser anarquista qualquer que seja o sistema filosófico que se prefira. Existem anarquistas materialistas, e também existem outros que, como eu, sem nenhum prejuízo sobre os possíveis desenvolvimentos futuros do intelecto humano, preferem declararem-se completamente ignorantes.

Não se pode compreender, por certo, como é possível conciliar certas teorias com a prática da vida
A teoria mecanicista, como a ateísta e a panteísta, levariam logicamente a indiferença e a inatividade, a aceitação absoluta de tudo o que existe, tanto no campo moral, como no material.

Mas, felizmente, as concepções filosóficas têm pouca ou nenhuma influencia sobre a conduta.
E os materialistas e mecanicistas, contra toda lógica, frequentemente se sacrificam por um ideal. Como o fazem, aliás, os religiosos que creem no gozo eterno do paraíso, mas pensam em viver bem neste mundo, e quando estão doentes, sentem medo de morrer e chamam ao médico. Assim como a pobre mãe que perde seu filho: acredita estar certa de que seu filho tenha se transformado em um anjo e a espera no paraíso...no entanto chora e se desespera.(1)

Entre os anarquistas existem aqueles que gostam de se classificar como comunistas, coletivistas, individualistas ou com outras denominações.
A miúde se trata de palavras interpretadas de maneira distinta que obscurecem e ocultam uma identidade de aspiração fundamental; às vezes, se tratam, apenas, de teorias, de hipóteses com as quais cada um explica e justifica de maneira distinta conclusões práticas idênticas.(2)
Entre os anarquistas existem os revolucionários que acreditam que é necessário abater, pela força, a força que mantém a ordem atual, para criar um ambiente no qual seja possível a evolução livre dos indivíduos e das coletividades. E existem os educacionistas que pensam que só se pode chegar à transformação social, transformando antes os indivíduos, por meio da educação e da propaganda. Existem partidários da não-violência ou da resistência passiva, que evitam a violência ainda que seja para combater a violência. E existem aqueles que admitem a necessidade da violência, os quais se dividem, por sua vez, no que diz respeito à natureza, alcance e limites da violência licita.

Existem discordâncias a respeito da atitude dos anarquistas frente ao movimento sindical, dissenso sobre a organização ou não organização própria dos anarquistas, diferenças permanentes ou ocasionais sobre as relações entre os anarquistas e os outros partidos subversivos.

São, justamente, estas e outras questões semelhantes que requerem entendimento. Ou se, aparentemente, o entendimento não é possível, deve-se aprender a tolerar-se: trabalhar juntos quando se está de acordo, e quando não, deixar que cada um faça o que lhe pareça certo
sem restringir uns aos outros. Porque, em verdade, se se leva em conta todos os fatores, ninguém tem sempre razão.(3)

O anarquismo basta-se a si mesmo moralmente, mas para se traduzir em ações necessita de formas concretas de vida material, e é a preferência de uma forma ao invés de outra que diferenciam entre si as diversas escolas anarquistas.

O comunismo, o individualismo, o coletivismo, o mutualismo e todos os programas afins e ecléticos não são, no campo anarquista, senão a maneira que se acredita ser melhor para realizar na vida econômica a liberdade e a solidariedade, o modo que se considera mais adequado para a justiça e liberdade de distribuir entre os homens os meios de produção e os produtos do trabalho.

Bakunin era anarquista, e era coletivista, inimigo encarniçado do comunismo (4) porque via nele a negação da liberdade e, portanto, da dignidade humana. E com Bakunin, e muito tempo depois dele, foram coletivistas – propriedade coletiva do solo, das matérias primas e
dos instrumentos de trabalho para cada produtor, subtraída a cota necessária para os encargos sociais – quase todos os anarquistas espanhóis, que se contava entre os mais conscientes e consequentes.

Outros, pela mesma razão de defesa e garantia da liberdade se declaram individualistas e querem que cada um tenha em propriedade individual a parte que lhe corresponde dos meios de produção e, por fim, a livre disposição dos produtos do seu trabalho. Outros idealizam sistemas mais ou menos complicados de mutualidade. Mas, em suma, é sempre a busca de uma garantia mais segura da liberdade o que constitui a característica dos anarquistas e os divide em diversas escolas. (5)

Os individualistas supõem ou falam como se supusessem que os comunistas (anarquistas) desejam impor o comunismo, o que naturalmente os excluiria em absoluto do anarquismo.

Os comunistas supõem ou falam como se supusessem que os individualistas (anarquistas) rechaçam toda ideia de associação, desejam a luta entre os homens, o domínio do mais forte – há quem, em nome do individualismo, tenha sustentado estas ideias e outras piores ainda, mas não se pode chamar de anarquistas tais individualistas-, e isto os excluiria não somente do anarquismo como também da humanidade.
Na verdade, os comunistas são assim porque no comunismo livremente aceito vem a consequência da fraternidade e a melhor garantia da liberdade individual. E os individualistas, os que são verdadeiramente anarquistas, são anticomunistas porque temem que o comunismo submeta os indivíduos nominalmente a tirania da coletividade e, na realidade, a do partido ou da casta, que com a desculpa de administrar, lograriam tomar o poder e dispor das coisas e, portanto, dos homens que tem necessidade dessas coisas, e desejam, então, que cada individuo ou cada grupo possa exercitar livremente a própria atividade e gozar livremente dos frutos desta em condições de igualdade com outros indivíduos e grupos, mantendo com eles relações de justiça e igualdade.

Se for assim, disso resulta que não há uma diferença essencial. Somente que, segundo os comunistas, a justiça e a equidade são, pelas condições naturais, irrealizáveis no regime individualista e, por isso, seria também irrealizável a liberdade. Além disso, resultaria impossível a proclamada igualdade de ponto de partida, isto é, um estado de coisas no qual cada homem encontrará, ao nascer, iguais condições de desenvolvimento e meios de produção equivalentes para poder subir a maior ou menor altura e gozar de uma vida mais ou menos longa e feliz segundo as próprias faculdades inatas e sua própria atividade.

Se em toda a Terra reinassem as mesmas condições climáticas, se os solos fossem igualmente férteis em toda parte, se as matérias primas estivessem distribuídas no mundo e ao alcance da mão de quem delas necessitam, se a civilização fosse geral e igual, e o trabalho das gerações passadas tivesse posto a todos os países em igualdade de condições, se a população estivesse parelhamente distribuída sobre toda a superfície habitável, então se poderia conceber que cada um, indivíduo ou grupo, encontrasse terra, instrumentos e matérias primas para poder trabalhar e produzir independentemente, sem explorar ninguém, nem ser explorado. Mas nas condições naturais e históricas, tais como se dão, como estabelecer a igualdade e a justiça entre aquele que por acaso tivesse um pedaço de terra mais árido que demandasse muito trabalho para um produto escasso e o que tivesse um pedaço de terreno mais fértil e bem situado? Ou entre o habitante de uma aldeia perdida no meio das montanhas ou no meio dos pântanos e o que vive em uma cidade enriquecida por centenas de gerações com todo o aporte da engenhosidade e do trabalho humanos (6)?

Recomendo vivamente a leitura do livro de Armand, L’iniziazione individualista anarchica... [que] é um livro consciencioso escrito por um dos anarquistas individualistas mais qualificados e que tem provocado a aprovação geral dos individualistas. Pois bem, ao ler este livro único, se pergunta por que Armand fala continuamente de “individualismo anárquico”, como um corpo de doutrina distinto, ao passo que em geral se limita a expor os princípios comuns a todos os anarquistas de qualquer tendência. Na realidade, Armand, que gosta de se declarar amoral, não tem feito nada senão uma espécie de manual de moral anarquista – não “anárquica individualista” -, mas anarquista em geral, e mais do que anarquista, moral humana em sentido amplo, porque se funda sobre os sentimentos de homens que fazem possível e desejável a anarquia (7).
Nettlau se equivoca, a meu ver, quando acredita que o contraste entre os anarquistas que se proclamam comunistas e os que se consideram individualistas se baseia realmente sobre a ideia do que cada um faz da vida econômica – produção e distribuição dos produtos - em uma sociedade anárquica. Depois de tudo, estas são questões que se referem a um porvir distante; e se é certo que o ideal, o objetivo último, é o farol que guia ou deveria guiar a conduta dos homens, é também mais certo que o que determina todo acordo ou desacordo não é o que se pensa fazer amanhã, senão o que se faz ou o que se quer fazer hoje.

Em geral, nos entendemos melhor e temos mais interesse em nos entender com quem percorre o mesmo caminho que o nosso, ainda que queiram ir a um lugar diferente, mais do que com aqueles que dizem querem ir aonde queremos, mas tomam um caminho oposto.
Assim, tem ocorrido que anarquistas das diversas tendências, a que pese que no fundo desejem a mesma coisa, tem se encontrado na prática da vida e da propaganda em encarniçada oposição.

Admitido o principio básico do anarquismo, isto é, que ninguém deveria ter o desejo nem a possibilidade de reduzir os demais à submissão e obriga-los a trabalhar para ele, fica claro que se incluem no anarquismo apenas aqueles modos de vida que respeitam a liberdade e reconhecem em cada um o mesmo direito de gozar dos bens naturais e dos produtos da própria atividade (8).


1 Pensiero e Volontà, 19 de julho de 1925.
2 Umanità Nova, 27 de fevereiro de 1920.
3 Pensiero e Volontà, 19 de abril de 1926
4 Neste trecho Malatesta se refere ao comunismo derivado do marxismo, posição que se tornou hegemônica na AIT, contra a qual Bakunin estabeleceu forte oposição. N.T.
5 Pensiero e Volontà, 8 de agosto de 1924.
6 Pensiero e Volontà, 19 de julho de 1924.
7 Pensiero e Volontà, 19 de julho de 1924
8 Pensiero e Volontà, 19 de abril de 1926.

Tradução: Ivan Thomaz Leite de Oliveira
Revisão: Marcelo De Marchi Mazzoni

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