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Um pouco de autocrítica

category brazil/guyana/suriname/fguiana | movimento anarquista | opinião / análise author Sunday June 29, 2014 08:44author by Estevam de Vieira - Liga Libertáriaauthor email liga.libertaria at riseup dot net Report this post to the editors

É sempre necessário recordamo-nos com honestidade que o Anarquismo deriva da tradição histórica (ou como chamam os mais antigos, tradição revolucionária), e que enquanto conjunto de ideias, propostas, críticas e soluções que contrariam o método científico advogado pelos marxistas – configurando mera "fábula", como afirmam de má fé seus adversários políticos – prioriza acima de tudo a orientação prática das ideias, visando tão somente à revolução social, sobretudo mediante a realização de seu objetivo finalista de reorganização da sociedade. Este artigo propõe uma reflexão sobre nossa responsabilidade enquanto propagadores e apoiadores do movimento.
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É sempre necessário recordamo-nos com honestidade que o Anarquismo deriva da tradição histórica (ou como chamam os mais antigos, tradição revolucionária), e que enquanto conjunto de ideias, propostas, críticas e soluções que contrariam o método científico advogado pelos marxistas – configurando mera "fábula", como afirmam de má fé seus adversários políticos – prioriza acima de tudo a orientação prática das ideias, visando tão somente à revolução social, sobretudo mediante a realização de seu objetivo finalista de reorganização da sociedade.¹

O Anarquismo historicamente tomou corpo e identidade própria através da discussão intestina promovida pela classe operária e campesina ainda na metade do século XIX, e buscava uma saída no campo político para seus dilemas, conflitos e lutas. Nesse período (Revolução Industrial, 2ª fase da Revolução Francesa, Comuna de Paris, etc.), os trabalhadores e seus movimentos, ligas e incipientes sindicatos amadureciam ainda suas posições de luta. O Socialismo se apresentava como ideia representante dos anseios dos trabalhadores, e tal discussão revelava no seio da AIT um descontentamento claro com as demais correntes socialistas – a reformista, a legalista e a estatista. Ou seja, o anarquismo se consolida, se define e se constrói dentro do tronco socialista, porém caracterizando seu setor libertário, que lança as bases de sua orientação teórica e aplicação prática através do antiautoritarismo, anticapitalismo, antiestatismo e protagonismo popular.

Podemos observar aí, investigando suas referências históricas, que o Anarquismo nem de longe se nos apresenta como ideologia individualista, ou ainda, como é comum ouvir hoje em dia, como negação da luta de classes. Tais deformações são absurdas: O Anarquismo, desde o berço, é social.

É certo, entretanto, que o Anarquismo apresenta tendências – e dissidências – diversas e profundas geradas a partir de seus debates, o que é comum a qualquer ideologia/teoria política. Ainda mais certo é que o anarquismo não é dogmático, não é uma escola política isenta de interpretações. Enquanto movimento político, adapta-se a seu tempo, procura se encaixar e inserir suas aspirações à realidade contingente, dando-lhes vazão prática. Aliás, isso sempre foi objeto de profunda discussão entre os anarquistas: Organizar-se? E como? – não discutiremos aqui o principio ou os métodos de organização – pois sobre eles repousam os conflitos internos que provocam a criação das tendências e dissidências conhecida por todos.

Todavia, é importante chamar a atenção para a abordagem errônea que se faz do Anarquismo, seja por falhas metodológicas (de seus próprios adeptos) ou más intenções (de seus adversários políticos). Por falta de espaço e para não me estender tanto, não analisarei aqui o segundo caso, da deturpação anticonceitual vinda de "pseudomarxistas" (excluo aí o setor minoritário e não-bolchevique/socialdemocrata, que preza pela autogestão social, organização operária e camponesa pelas bases, longe de partidos políticos), mas sim o primeiro, a meu ver mais urgente. A mais grosseira das distorções deriva da perspectiva a-histórica: aquela que não leva em conta conceitos político-ideológicos construídos historicamente, reduzindo o anarquismo a uma caricatura vazia, somente levando em conta a etimologia do termo “anarquia/anarquismo” e através dessa análise simplista, reforçando somente a ideia de negação, como se não houvesse preocupação dos anarquistas em construir algo no lugar do que se pretende destruir. Ignora-se seus princípios e sua carga teórica (luta de classes, igualdade econômica, poder popular, socialismo, anticapitalismo, etc.), e as práticas revolucionárias nos países ou regiões onde foi preponderante (Ucrânia, Rússia, Brasil, Bulgária, Manchúria, Espanha, para citar apenas alguns exemplos).

Esse tipo de abordagem – feita mormente por seus adversários políticos bolcheviques, liberais, pós-estruturalistas/pós-modernos – deu margem à criação de vários pressupostos ideológicos, escolas e movimentos que se auto denominam "libertários", nascendo daí uma constelação de anarquismos, cada qual obediente a uma adaptação/deformação/revisão própria, mas marcado pela característica comum a todos, que é o claro esvaziamento ideológico, transformando-se o anarquismo então num conceito abstrato, numa filosofia individualista com aspirações místicas, idealistas, encarcerada na subjetividade, no relativismo ético e individualidade dos sujeitos; descompromissada com projetos políticos amplos e organizações revolucionárias sérias.

O Anarquismo passa então a funcionar não mais como um instrumento de luta da classe operária e dos oprimidos para sua defesa e emancipação, mas como mero passatempo, objeto de requintados debates acadêmicos, de afirmação da intelectualidade pessoal e majoritariamente inserido no conjunto de fenômenos contra-culturais; na música punk, no rock agressivo, descolado e crítico. Esta interpretação vem, de maneira nociva, despojando o Anarquismo de seu sentido revolucionário.

Mas por que o fenômeno? No períodos conturbados entre as grandes guerras do século XX e em meio à ação ditatorial, o Anarquismo perdeu seu vetor social (o sindicato). Surgiu a necessidade de se buscar uma nova identidade para o movimento e sua militância, e, inevitavelmente, não havendo sido encontrado novo vetor social, inadaptados por esse período conturbado, os próprios trabalhadores alimentaram as práticas e compreensões errôneas acerca do Anarquismo. Para muitos militantes e setores outrora engajados na luta, a perda de perspectivas anunciou grande prejuízo futuro, o que os levou pouco a pouco ao niilismo e a intrigante inação. O que sobra de todo o arsenal teórico criado por Malatesta, Bakunin, Makhno, Kropotkin, etc., e do que uma militância séria oferece, é tão só a negação do Estado, ao passo que muitos sujeitos começam a flertar com as tendências pós-modernas. Então cria-se e privilegia-se um "anarquismo de estilo de vida”, desacostumado à militância e sem compromisso com a revolução social, que sempre foi encabeçada por ele desde sua origem. Soma-se isso a brecha da falta de estrutura organizativa, passando-se a valorizar muito mais as relações afetivas e pessoais em vez da ação coletiva e do cultivo das responsabilidades políticas.

Jo Freeman, militante feminista, nos mostra: “Para que todas as pessoas tenham a oportunidade de se envolver num dado grupo e participar de suas atividades, é preciso que sua estrutura seja explícita, e não implícita. As regras de deliberação devem ser abertas e disponíveis a todos, e isso só pode acontecer se elas forem formalizadas. Isto não significa que a normalização de uma estrutura de grupo irá destruir a estrutura informal. Ela normalmente não destrói, mas impede a estrutura informal de ter o controle predominante, e torna disponível alguns meios de atacá-la. A ausência de estrutura é organizacionalmente impossível.”²

Urge então que nós, militantes sociais, sindicalistas revolucionários e demais camaradas compromissados com a causa da revolução junto aos setores oprimidos, resgatemos a militância séria, trabalhemos pela ética libertária e disciplina revolucionária, desmistificando estereótipos criados, vícios prejudiciais, caricaturas feitas ao anarquismo por nossos adversários e inimigos políticos a partir de seus referenciais teóricos.

Não é de hoje que no interior do movimento anarquista tais deformações vêm sendo criticadas por diversos militantes: Desde os clássicos, Bakunin faz frente à concepção burguesa de liberdade, notando seu próprio conceito de caracteres essencialmente coletivos; Malatesta também rivaliza com os antiorganizacionistas e individualistas que eram contrários ao principio de organização em sua época (os segundos, considerados um fenômeno marginal, um “exotismo pequeno-burguês” dentro do Anarquismo, completamente inofensivos ao capitalismo e ao Estado, restringiam-se a artistas, boêmios, literatos e outras figuras que resolveram afastar-se dos propósitos da classe trabalhadora). Nestor Makhno e o Dielo Trouda, polemizando em sua Plataforma Organizacional e na Noção de Síntese, deixam claro a incompatibilidade de tais deformações com o Anarquismo militante e revolucionário; Luigi Fabbri, que tece críticas severas ao que ele próprio chamava de “influências burguesas no anarquismo”; Camilo Berneri em “Cretinismo Anarquista” e até recentemente Murray Bookchin em “Crítica e Autocrítica”, “Anarquismo Social ou Anarquismo de Estilo de Vida”. E por que não ressaltar a luta e esforço dos grupos políticos libertários e revolucionários através do resgate da militância séria e compromissada junto ao povo? Tudo isto apenas para citar os exemplos mais notáveis.

Por fim, não propus aqui um artigo elaborado e acadêmico, posso inclusive estar equivocado em algumas proposições. De maneira alguma pretendo criar uma separação, ou qualificar um anarquismo "X" ou "Y" como superiores a outras propostas e escolas, mas quero sim, de alguma forma, propor aos camaradas que se preocupam com os rumos que a causa está tomando, uma reflexão e autocrítica acerca da mesma, reafirmando a busca pelo resgate da ética, do compromisso e da disciplina libertária (conceitos tão esquecidos hoje em dia), embasados na experiência e no acúmulo de anos de militância deixados para nós pelas antigas gerações. E claro, o mais importante, que nós não repitamos os erros do passado.

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Notas e referências bibliográficas:

¹ MALATESTA, Errico – Escritos Revolucionários, 2008.
² FREEMAN, Jô - A Tirania das Organizações Sem Estrutura, 1970.
MINTZ, Frank - Anarquismo Social, 2006.
BOOKCHIN, Murray - Anarquismo Social ou Anarquismo de Estilo de Vida, 2001.
FARJ/DA SILVA, Rafael - Anarquismo Contra Anarquismo, 2011.

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