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A Lógica do Estado em Bakunin

category brazil/guyana/suriname/fguiana | movimento anarquista | opinião / análise author Tuesday June 02, 2015 00:04author by Felipe Corrêa Report this post to the editors

Na obra bakuniniana, o Estado moderno, em todas as suas formas ou regimes de governo, é considerado um instrumento político de dominação de classe que possui natureza dominadora, caráter de classe e função de garantir a dominação de classe. Essa tese bakuniniana será discutida a seguir por meio de quatro argumentos: 1.) A dinâmica do Estado, em suas distintas formas, está relacionada a diferentes tipos de dominação, na esfera política e em outras; 2.) As dominações do Estado são levadas a cabo em função de interesses das classes dominantes, sendo que a burocracia é uma dessas classes; 3.) Tanto o Estado quanto a burocracia tendem a conservar-se, principalmente em caso de a dominação em nível sistêmico e estrutural perdurar; 4.) A abolição do Estado é imprescindível para o estabelecimento do socialismo e a garantia da emancipação popular. Pretende-se, com isso, dar respostas a algumas questões. Mesmo relacionando Estado e dominação, como se explica essa natureza dominadora do Estado? Por que o Estado domina? Ainda que relacionando Estado e classes dominantes, como se definem e explicam as classes sociais e o caráter de classe da dominação do Estado? Como e por que a dinâmica do Estado contribui com a função de manter a dominação de classe na sociedade? Quais são as implicações estratégicas dessa análise teórica?
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“O Estado nada mais é do que o verdadeiro
representante político das classes privilegiadas,
e que estas últimas representam
perfeitamente a vida social do Estado.”
Mikhail Bakunin



Este texto discute a lógica do Estado em Mikhail Bakunin, em seu período anarquista, a partir de uma abordagem imanente, que segue seus próprios pressupostos teórico-metodológicos e prioridades para a compreensão deste objeto.

Abordar o período anarquista de Bakunin implica adotar uma seleção temporal adequada de seus escritos. Considera-se, em acordo com René Berthier (2008, p. 6), que o “período propriamente anarquista de Bakunin” encontra-se entre 1868 e 1876. Sua passagem ao anarquismo conclui-se com o ingresso na Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), ou, Primeira Internacional, e com a fundação da Aliança da Democracia Socialista (ADS).

A “lógica do Estado em Bakunin” aqui apresentada envolve elementos de sua teoria anarquista do Estado, desenvolvida de 1868 em diante. Tal análise fundamenta-se, principalmente, em Estatismo e Anarquia, de 1873 (Bakunin, 2003a) – um dos escritos mais importantes do autor –, e é complementada, na medida da necessidade, por outros textos e comentadores. Para o complemento bibliográfico de Bakunin, consideram-se seus escritos do período anarquista e, também, “Federalismo, Socialismo e Antiteologismo” (Bakunin, 1988), que foi produzido entre 1867 e 1868 e marca sua transição ao anarquismo; em termos de teoria do Estado, este escrito apresenta aspectos determinantes que serão aprofundados nos anos ulteriores.

Realizar essa abordagem imanente do objeto exige que se compreenda, em linhas gerais, o quadro de referência utilizado por Bakunin, em seu período anarquista, para a análise da sociedade em geral, e do Estado em particular, chamado por ele de “materialismo científico”. (Cf. Berthier, 2012) Esse conjunto de método de análise e teoria social oferece elementos para que se aborde devidamente a relação entre Estado e sociedade e para que se observe que o Estado insere-se em uma dinâmica social mais ampla.

Bakunin (2000b, p. 14) reconhece que “os idealistas estão errados e os materialistas estão certos”, visto que “os fatos têm primazia sobre as ideias” e, assim, propõe o abandono das leituras metafísicas e teológicas da realidade e que se busque entendê-la a partir de seus fundamentos materiais, do homem real, do ser vivo em sua totalidade. Por matéria, Bakunin (2000c) entende “a totalidade, toda a escala dos seres reais, conhecidos e desconhecidos, desde os corpos orgânicos mais simples até a constituição e o funcionamento do cérebro do maior gênio”. O homem e suas relações, considerados desde essa perspectiva materialista, não podem ser considerados o resultado de uma intervenção divina ou mesmo um movimento de consciência pura; devem, pois, ser compreendidos desde seus fundamentos materiais. A base real do homem, sustenta o autor, sua condição de existência, assenta-se na necessidade de garantir os meios de sua existência e de reproduzi-la. Assim, a economia, organização social dos meios para garantir as necessidades naturais da existência e da reprodução material dos homens, torna-se central e fator determinante.

Segundo Bakunin (2000d), “Marx [...] estabeleceu como princípio que todas as evoluções políticas, religiosas e jurídicas na história são, não as causas, mas os efeitos das evoluções econômicas. É uma grande e fecunda ideia.” Entretanto, esse princípio é verdadeiro “quando se considera sob seu real aspecto, isto é, de um ponto de vista relativo”, visto que os fenômenos políticos, dentre eles o Estado, assim como os fenômenos culturais, uma vez dados, têm condições de determinar a economia num processo dialético e, por isso mesmo, dinâmico. Bakunin (2011, p. 55) considera fundamental tomar em conta “a reação, todavia evidente, das instituições políticas, jurídicas e religiosas sobre a situação econômica”. Discutindo a dialética da economia com a política, o autor continua: se é verdade que “a miséria produz a escravidão política, o Estado”, também “a escravidão política, o Estado [...] reproduz e conserva a miséria, como uma condição de sua existência”. E não é somente essa capacidade de agência do Estado que se destaca, mas também o fato de ele possuir características e dinâmicas próprias, as quais não podem ser reduzidas a uma dinâmica social de base estrutural econômica.

Além disso, nas explicações que realiza da sociedade, sejam elas teóricas ou históricas, o autor considera que as classes sociais e a luta de classes constituem aspectos fundamentais.[1] Por meio de uma teoria das classes sociais que será explicada adiante, Bakunin (1988, pp. 15-16) enfatiza que, na sociedade moderna, “a diferença das classes é, todavia, muito marcada” e sustenta que uma “minoria comparativamente muito restrita de cidadãos privilegiados” contrapõe-se a uma maioria de trabalhadores das cidades e dos campos, condenada ao “trabalho forçado (pela fome)”, protagonizando um processo de luta de classes.

Dessa maneira, analisar o Estado, tomando em conta o materialismo científico bakuniniano, exige não somente que se abandonem as posições teológicas, metafísicas e abstratas em geral, mas que se relacione o Estado, desde uma perspectiva materialista, com a totalidade social, a sociedade civil em geral, e com as classes sociais em particular. Mesmo que se reconheça a centralidade da economia, deve-se reconhecer, também, a dialética entre ela e outras esferas sociais, as quais possuem, conforme colocado, capacidade de determiná-la. Deve-se considerar, inclusive, que há aspectos próprios do Estado, que são irredutíveis à estrutura econômica da sociedade. Recusa-se, assim, o determinismo econômico vulgar e concilia-se economia, política e cultura, assim como estrutura social e agência humana.

Analisar o Estado de acordo com as prioridades estabelecidas pelo autor implica, ainda, priorizar a abordagem lógica deste objeto. Conforme aponta Berthier (2001, pp. 3-4), Bakunin expõe sua teoria do Estado em duas perspectivas distintas, uma histórica e outra lógica: “há, na realidade, dois registros a partir dos quais a questão do Estado é abordada: o registro histórico [...] e o registro lógico”. Mesmo que complementares, essas perspectivas – histórica e lógica, o filme e a foto, o diacrônico e o sincrônico – são distintas, visto que a conformação histórica de um fenômeno não explica completamente seu funcionamento lógico. Em acordo com a prioridade estabelecida por Bakunin que, ao discutir o Estado, “não se preocupa tanto em situar o evento no tempo”, mas, principalmente, compreender “o processo”, investiga-se, neste texto, essa explicação processual, lógica do Estado.

De acordo com Jean-Cristophe Angaut (2005, p. 435), a teoria bakuniniana do Estado começou a ser elaborada a partir da análise do Estado russo, durante os anos 1840 e 1850, quando o autor ainda não era anarquista. Entretanto, foi durante os anos 1860, em especial em seu período anarquista, que ele desenvolveu, por meio da análise de fenômenos ocorridos em diversos países da Europa, uma teoria geral do Estado mais robusta, que, além de conter reflexões sobre aspectos gerais e particulares, possui fundamentos capazes de subsidiar uma caracterização adequada do Estado.

Pode-se dizer que Bakunin define o Estado em termos de natureza, caráter e função. Concilia, dessa maneira, a reflexão hegeliana de juventude acerca da separação-oposição entre Estado e sociedade civil com o papel do Estado na sociedade de classes, concebido mais adiante como fruto de sua transição ao socialismo. Na obra bakuniniana, o Estado moderno, em todas as suas formas ou regimes de governo, é considerado um instrumento político de dominação de classe que possui natureza dominadora, caráter de classe e função de garantir a dominação de classe.[2]

Essa tese bakuniniana será discutida a seguir por meio de quatro argumentos: 1.) A dinâmica do Estado, em suas distintas formas, está relacionada a diferentes tipos de dominação, na esfera política e em outras; 2.) As dominações do Estado são levadas a cabo em função de interesses das classes dominantes, sendo que a burocracia é uma dessas classes; 3.) Tanto o Estado quanto a burocracia tendem a conservar-se, principalmente em caso de a dominação em nível sistêmico e estrutural perdurar; 4.) A abolição do Estado é imprescindível para o estabelecimento do socialismo e a garantia da emancipação popular.

Pretende-se, com isso, dar respostas a algumas questões. Mesmo relacionando Estado e dominação, como se explica essa natureza dominadora do Estado? Por que o Estado domina? Ainda que relacionando Estado e classes dominantes, como se definem e explicam as classes sociais e o caráter de classe da dominação do Estado? Como e por que a dinâmica do Estado contribui com a função de manter a dominação de classe na sociedade? Quais são as implicações estratégicas dessa análise teórica?


Aumento de força e dominação de classe

A função do Estado, de garantir a dominação de classe, implica diferentes tipos de dominação, o que faz com que Estado e dominação estejam permanente e indissociavelmente relacionados: “Quem diz Estado, diz necessariamente dominação [...], eis por que somos inimigos do Estado”. (Bakunin, 2003a, p. 212) Compreender como e por que se dá essa associação direta entre Estado e dominação exige, entretanto, uma explicação mais pormenorizada. Para cumprir sua função, o Estado precisa aumentar sua força permanentemente, principalmente por dois motivos: para não ser conquistado ou dominado por outros Estados e para conseguir estabelecer a manutenção interna da ordem.

Para Bakunin (2003a, p. 66), o poder político do Estado tende a concentrar-se e a buscar a hegemonia por meio da constituição de impérios; há, dessa maneira, similaridades entre a dinâmica do Estado e a do capital: “A mesma concorrência que, no plano econômico, esmaga e devora os pequenos, e até mesmo os médios capitais, estabelecimentos industriais, propriedades fundiárias e casas de comércio, esmaga e devora os pequenos e médios Estados, em proveito dos impérios”. Se no plano econômico o grande capital derrota o pequeno no processo de concorrência, tendendo a concentrar-se, na política, “todo Estado que não se contentar em existir no papel e pela graça de seus vizinhos, pelo tempo que estes quiserem tolerar, mas desejar ser um Estado real, soberano, independente, deve ser necessariamente um Estado conquistador.” Na disputa internacional entre os Estados nacionais é necessário, para a manutenção da soberania, que o Estado conquiste ou, pelo menos, que não seja conquistado e, assim, permaneça subjugado ou mesmo desapareça.

Visando participar adequadamente dessa dinâmica, os Estados têm de se fortalecer militarmente, em especial por meio dos exércitos, conforme coloca Bakunin (2003a, p. 36): “O Estado moderno, por sua essência e pelos objetivos que se fixa, é por força um Estado militar”, que deve, necessariamente, “se tornar um Estado conquistador; se ele próprio não se lançar à conquista, será conquistado, pela simples razão de que, por toda parte onde a força existe, é preciso que ela se mostre ou aja.” O Estado moderno precisa ser grande e forte, de maneira a salvaguardar-se e impor-se nas relações internacionais. Assim como as iniciativas capitalistas tendem ao monopólio, “o Estado moderno, militar por necessidade, traz em si a irresistível aspiração a tornar-se um Estado universal”; ou seja, ele tende à hegemonia generalizada.

Entretanto, é evidente que não são todos os Estados que possuem essa vocação para a conquista e mesmo que conseguem levá-la a cabo. Se por um lado os grandes e poderosos Estados tendem a conquistar os menores, a estes últimos resta aumentar suas forças de defesa na tentativa de evitarem serem conquistados. (Bakunin, 2008b, p. 27)

Consequências desse processo são os conflitos constantes: “entre todos os Estados que existem, um ao lado do outro, a guerra é permanente e a paz apenas uma trégua”. (Bakunin, 2008b, p. 28) A tendência à concentração do poder político e essa “vocação imperialista” (Cappelletti, 1986, p. 222) do Estado moderno implicam, pois, conflitos constantes entre Estados nessa luta pela dominação e a resistência nacional. Mesmo os momentos de paz não significam que tenha havido o fim da dominação.

Além disso, Bakunin (2003a, p. 87) aponta a necessidade, por parte do Estado moderno, da manutenção da ordem em seus próprios territórios: “Para manter a ordem interna”, coloca, “para preservar sua unidade imposta pela coação”, o Estado moderno necessita não somente de “um grande exército”, mas também “de uma polícia, de uma burocracia gigantesca”. Em circunstâncias de normalidade, a ordem é preservada pelos próprios mecanismos de legitimação produzidos e reforçados, dentre outros agentes, pelo próprio Estado. Quando isso não é suficiente, a ameaça da violência ou a própria violência desencadeada pelo Estado em forma de repressão vem à tona e garante a preservação do status-quo. Esses braços policial-militar e burocrático do Estado agem por meios mais ou menos violentos, a depender da circunstância, e seus agentes – policiais, militares, governantes, juízes – encarnam diretamente essa tarefa, controlando populações inteiras e garantindo que não se coloquem em xeque os aspectos fundamentais da estrutura social.

A preservação do status-quo envolve diretamente a continuidade dos privilégios das classes dominantes. O Estado não somente garante, mas proporciona, ele próprio, as condições para o monopólio do poder político pela burocracia, que usufrui do privilégio de tomar as decisões concernentes às regras de funcionamento da sociedade, à solução de conflitos, à execução de deliberações, à coação e à punição. Privilégio que, ao mesmo tempo, se relaciona aos benefícios econômicos dos quais a burocracia também usufrui. Bakunin (2003a, p. 169) sustenta que o Estado tem por “efeito consolidar, direta e infalivelmente, os privilégios políticos e econômicos da minoria governante e a escravidão econômica e política das massas populares”. É também o Estado que garante a exploração do trabalho, por meio da submissão das massas, como destaca Bakunin (2003a, p. 35, 228), ao afirmar que o Estado moderno visa “a organização, na mais vasta escala, da exploração do trabalho, em proveito do capital concentrado em pouquíssimas mãos”. Em razão de este capital constituir “a alma de todo Estado político”, principalmente por financiá-lo, o segundo garante ao primeiro “o direito ilimitado de explorar o trabalho do povo”. Proprietários das terras e das indústrias capitalistas têm, assim, garantidos seus privilégios na apropriação de parte do produto do trabalho de camponeses, operários e outros trabalhadores. Assim se caracteriza a “vocação escravista” (Cappelletti, 1986, p. 223) do Estado moderno.

Segundo o autor, a maior ameaça à manutenção da ordem é a revolução social, pois ela implica não somente a “abolição de toda exploração e de toda opressão política ou jurídica, governamental ou administrativa, quer dizer, a abolição de todas as classes por meio do nivelamento econômico de todos os bens”, mas também, e imprescindivelmente, a “destruição de seu último bastião, o Estado”. Colocam-se, desse modo, “de um lado, o Estado, de outro, a revolução social”, caracterizando uma clara contradição entre os oprimidos na busca pelo fim da dominação e dos privilégios de classe e o instrumento político que os garante. (Bakunin, 2003a, pp. 73, 44)

Portanto, para não ser conquistado ou dominado por outros Estados e manter a ordem interna, o Estado moderno precisa aumentar permanentemente sua força. Nesse processo, envolve-se em conflitos com outros Estados e com seu próprio povo:

“Todos os Estados [...] estão condenados a uma luta perpétua: luta contra suas próprias populações, oprimidas e arruinadas, luta contra todos os Estados estrangeiros, dos quais cada um só é poderoso sob a condição de que o outro seja fraco; e como só podem conservar-se nesta luta aumentando a cada dia sua força, tanto no interior, contra seus próprios cidadãos, quanto no exterior, contra as potências vizinhas – resulta disso que a lei suprema do Estado é o aumento de sua força em detrimento da liberdade interior e da justiça exterior.” (Bakunin, 1998, p. 41)

Reforçando o argumento da necessidade constante de aumento de força, Bakunin (2008b, p. 28) reflete acerca da dinâmica entre as forças sociais conflitivas que conformam a sociedade e afirma que é da natureza dessas forças que as maiores se imponham às menores; mesmo uma destas últimas “não pode suportar nenhuma outra, nem superior, nem igual” e só se submete “quando a isso é obrigada, quer dizer, quando se sente impotente para destruí-la ou derrubá-la”. Na dinâmica do Estado, isso implica que se um Estado não está aumentando permanentemente sua força, outros Estados podem estar, assim como os proletários, camponeses e marginalizados; há, dessa maneira, um risco em relação a seu poder. Se o Estado quer assegurá-lo, externa e internamente, e dessa forma cumprir sua função, deve assegurar um fortalecimento constante, sua maior garantia de que não será ameaçado por fatores externos ou internos.

Bakunin demonstra como o Estado moderno consegue, de fato, aumentar sua força. A forma mais adequada para isso é por meio da conciliação de suas vocações imperialista e escravista para transformar a dominação exterior e interior em força social; tais dominações constituem suas fontes mais relevantes de poder. Há pelo menos oito mecanismos que permitem que um Estado obtenha força e a aumente, os quais podem ser reconhecidos nas análises que Bakunin realiza da Alemanha, e também de outros Estados europeus: extensão do território, tipo de território, presença em “territórios livres”, recursos financeiros, recursos organizativos e militares, extensão da população, apoio da população e limite da participação política da população.

Considerando os argumentos de Estatismo e Anarquia, podem-se realizar algumas afirmações acerca desses mecanismos. Quanto maior for o território de um Estado, maior será sua força, por razão do espaço e dos recursos dos quais ele pode usufruir, que incluem possibilidades de exploração de minas e outros recursos naturais, espaço para indústrias, agricultura, pecuária, moradia etc.; as conquistas são ferramentas importantes para a anexação de novos territórios e, no caso delas ocorrerem em regiões desenvolvidas, pode haver ainda outros recursos a serem explorados; dependendo do tipo de território que se possui ou conquista, há maiores ou menores possibilidades de aumento de força, especialmente em função de suas dimensões e dos recursos nele existentes; há grandes vantagens nos territórios que contam com regiões portuárias e, assim, com acesso aos oceanos, visto que as navegações e o comércio marítimo proporcionam distintos benefícios; a presença em territórios livres como mares e espaço aéreo é, também, significativa. Os recursos financeiros do Estado podem ser obtidos com a dominação externa (guerras, colonialismo, imperialismo), com a dominação interna (impostos, exploração direta) e mesmo por meio dos empréstimos e do roubo puro e simples; visando obter dinheiro, o Estado apoia os proprietários dos meios de produção, os banqueiros e os grandes comerciantes. O Estado pode potencializar seus próprios recursos organizativos, em particular por meio da centralização e da administração racional com vistas à eficácia; em termos militares, o número de efetivos, a quantidade e o nível de equipamentos, o grau de disciplina e organização, a qualidade dos comandantes e o nível de compromisso com o Estado são importantes. Quanto maior for a população de um Estado, quanto mais essa população apoiar o Estado e quanto mais o Estado puder conservar sua gestão nas mãos de uma minoria, dando a impressão de que ela representa a maioria, maior será a força do Estado; mais pessoas significa, principalmente, maiores recursos financeiros e possibilidades de crescimento do exército com pessoas que, ao menos em tese, são mais fiéis ao Estado do que os mercenários; o apoio dessa população é central e, por isso, o patriotismo e a submissão de corpos e mentes dos governados tornam-se fundamentais; garantir o controle do Estado por uma minoria que pareça defender os interesses gerais, se não aumenta, pelo menos mantém a força do Estado, e nisso reside o valor da democracia representativa.

É importante apontar que quando Bakunin fala de aumento de força não se trata, exclusivamente, de força bruta, coerção física, militarismo; força, para ele, implica recursos que estão para além disso: naturais, financeiros, organizativos, humanos etc. Ou seja, trata-se de um processo que, inclusive, extrapola a esfera política e abarca elementos econômicos e culturais. Por isso, a noção de força aqui abordada possui sentido de “força social”, que pode ser conseguida de diferentes maneiras, que incluem a coação e as armas, mas que não se resumem a elas.

Ainda assim, o papel desse aspecto coercitivo não deve ser diminuído. Bakunin (2003a, p. 47; 58-59) afirma que “o Estado é precisamente sinônimo de coerção, domínio pela força, camuflada, se possível, e, se necessário, brutal e nua”. O monopólio da violência constitui, assim, aspecto determinante na manutenção do status-quo, ainda que dissimulado: “o Estado, seja ele qual for, mesmo assumindo as formas mais liberais e mais democráticas, está necessariamente fundado na supremacia, no domínio, na violência, isto é, no despotismo, camuflado se se preferir, mas neste caso ainda mais perigoso”. Essa coerção física – seja ela realmente levada a cabo com a utilização da violência, ou potencialmente utilizada em forma de ameaça – constitui certamente um dos mais importantes meios de ação do Estado. Conforme apontado, para além dessa força stricto sensu, o Estado investe em meios que envolvem a diplomacia e, o que é muito relevante, a legitimidade.

“O Estado é a força, e tem, antes de mais nada, o direito da força, o argumento triunfante do fuzil. Mas o homem é tão singularmente feito que este argumento, por mais eloquente que pareça ser, não é mais suficiente com o passar do tempo. Para impor-lhe respeito, é-lhe absolutamente necessária uma sanção moral qualquer. É preciso, além do mais, que esta sanção seja simultaneamente tão simples e tão evidente que possa convencer as massas que, após terem sido reduzidas pela força do Estado, devem ser conduzidas ao reconhecimento moral de seu direito.” (Bakunin, 2000b, pp. 88-89)

Tal sanção pode ser garantida pelo próprio Estado, que conforma uma moral particular, que Bakunin (2008b, p. 28) elucida da seguinte maneira: “Tudo o que serve é bom, tudo o que é contrário a seus interesses é declarado criminoso, tal é a moral do Estado”. O Estado tem um papel fundamental na produção e na reprodução de proposições discursivas que possuem efeitos morais e que evitam a utilização permanente da violência e, assim, o desgaste do próprio Estado. A violência não possui eficácia se for permanentemente utilizada. Por isso, é necessário convencer as massas de que a situação de dominação por elas vivenciada é normal, justa, correta; eis a eficaz legitimidade promovida pelo Estado. Essa moral, que ganha traços ideológicos, constitui, de acordo com o que sustenta o autor, uma força material.

Com a progressiva racionalização da sociedade, o Estado promove outras ferramentas de legitimação, dentre as quais se encontram a democracia representativa e o Direito. Este último, conforme aponta Berthier (2011b, pp. 69-73), constitui, no pensamento bakuniniano, assim como o próprio Estado, o resultado de um conflito de forças de base classista e um ferramental de legitimação central para as classes dominantes. Ainda assim, essa legitimação do Estado também possui respaldo em processos que estão para além da política.


Dominação em todas as esferas

Compreende-se mais adequadamente, neste momento, porque Bakunin relaciona diretamente Estado e dominação. Relaciona-se, em seguida, esse processo de busca de aumento de força do Estado e distintos tipos de dominação, os quais serão brevemente discutidos e conceituados com auxílio de outros autores.

Conforme colocado, na busca pela ampliação de seu território e de seus recursos, diferentes Estados promovem a conquista que “não é somente a origem, é também o objetivo supremo de todos os Estados, grandes ou pequenos, poderosos ou fracos, despóticos ou liberais, monárquicos ou aristocráticos, democráticos e até mesmo socialistas”. (Bakunin, 2008b, p. 27) Essa vocação imperialista do Estado moderno não somente está por trás das guerras, mas também da dominação imperial/colonial, levada a cabo efetivamente por um conjunto restrito de Estados em detrimento de outros, envolvendo privilégios econômicos, políticos e culturais. Esse tipo de dominação nacional, que se pode chamar mais genericamente de imperialismo, o qual é exercido pelos Estados conquistadores, pode ser conceituado como a “dominação externa da classe dominante de um país sobre todas as classes de um outro país”. (Schmidt e van der Walt, 2009, p. 314)

O Estado moderno fundamenta-se, por sua vocação escravista, mesmo que não somente nela, na supremacia e no domínio da violência, seja por meio da ameaça de sua utilização ou por sua utilização de fato. Essa relação entre Estado e violência constitui as bases da coação física, “o mais antigo [tipo de dominação] da história [que] está presente, como ‘última ratio’, em praticamente todos os sistemas de dominação”, manifestando-se nos “aparatos policiais, repressivos” e nas “organizações militares modernas”. (Errandonea, 1989, p. 95)

O Estado também busca garantir que sua gestão continue concentrada em uma minoria. Bakunin (2003a, pp. 213) caracteriza o Estado como “o governo da imensa maioria das massas populares [que] se faz por uma minoria privilegiada”. Essa cisão da sociedade entre uma minoria privilegiada que governa e uma maioria que é governada constitui um traço marcante do Estado moderno e parte relevante de sua vocação escravista. Para o autor, não há somente separação, mas contradição entre o conjunto restrito de pessoas que gerem o Estado e tomam as decisões políticas e um amplo conjunto de pessoas que estão alienadas em relação a elas e que obedecem as decisões que lhes dizem respeito, mas que são tomadas por outros. Isso, para Bakunin (2003a, p. 79), tem uma consequência: quanto “mais o jugo que se mantém sobre elas [as massas populares] é esmagador, mais o povo fica na impossibilidade de exercer um controle sobre ele, mais a administração do país se afasta da gestão do próprio povo”. Quanto mais o Estado se fortalece e monopoliza o processo de decisões, mais se enfraquecem os governados, vista a impossibilidade de um autogoverno deles sobre si mesmos. Pode-se dizer que essa cisão minoria governante / maioria governada implica uma dominação político-burocrática: “uma das [dominações] mais duradoras historicamente e que possui maior relevância nos regimes atuais” caracterizando-se pela capacidade de um grupo restrito “tomar as decisões que afetam a sociedade global em geral” sem seu envolvimento. (Errandonea, 1989, p. 95)

Dessa maneira, tomando em conta somente a esfera política, é possível afirmar que a existência e o funcionamento do Estado moderno implicam, pelo menos, três tipos de dominação: imperialismo, coação física e dominação político-burocrática. Entretanto, as dominações relacionadas ao Estado não se restringem à esfera política; envolvem, também, a esfera econômica e cultural, principalmente em razão da exploração do trabalho e da alienação cultural, que serão discutidas em seguida.

Conforme argumentado, para Bakunin, a função do Estado é garantir a dominação de classe. A exploração do trabalho, por ele assegurada jurídica e militarmente, está entre os mais relevantes privilégios das classes dominantes que precisam do Estado para serem mantidos. Por isso, um dos objetivos do Estado moderno é

“a organização, na mais vasta escala, da exploração do trabalho em proveito do capital concentrado em pouquíssimas mãos. [...] A indústria capitalista e a especulação bancária modernas necessitam, para se desenvolverem em toda a amplitude desejada, destas grandes centralizações estatais, que, sozinhas, são capazes de submeter à sua exploração os milhões e milhões de proletários da massa popular.” (Bakunin, 2003a, p. 35)

É dessa maneira que ele sustenta uma dialética Estado-exploração, ou, mais especificamente, Estado-capitalismo, em que um necessita do outro para desenvolver-se. O Estado constitui a única instituição capaz de submeter as massas à exploração econômica, garantindo a propriedade dos meios de produção em geral e da extração de mais-valia do trabalho em particular. Bakunin (2007, p. 4) afirma que a propriedade e o capital “significam o poder e o direito, garantidos pelo Estado, de viver sem ter de trabalhar”. Visto que “nem a propriedade, nem o capital produzem qualquer coisa se não forem fertilizados pelo trabalho, isso significa o poder e o direito de viver à custa da exploração do trabalho alheio”, ou seja, “o direito de explorar o trabalho daqueles que não possuem propriedade ou capital e que, portanto, são forçados a vender sua força produtiva aos afortunados detentores de ambos”.

A exploração do trabalho é um processo econômico; esse conceito “parte da noção que um indivíduo ou uma classe de indivíduos se vê obrigado a trabalhar mais que o necessário para satisfazer suas necessidades básicas; a razão disso é que o sobreproduto aparece de um lado e o não trabalho e a riqueza suplementar aparecem de outro”. (Errandonea, 1989, p. 29) Nota-se, nessa relação entre Estado e exploração, a influência apontada por Bakunin na dinâmica social do político em relação ao econômico, fortalecendo uma dominação de caráter sistêmico. Pode-se dizer, ainda, que os processos de conquista, e as dominações coloniais e imperiais, contribuem com a exploração econômica, fundamentalmente por meio da expropriação do trabalho dos trabalhadores de países dominados.

Bakunin sustenta que o Estado moderno também envolve outro tipo de dominação: a “alienação cultural” (Errandonea, 1989), que implica um distanciamento do conhecimento da realidade, das forças e interesses que a compõem. Viu-se que um dos meios de legitimação do Estado moderno é o desenvolvimento de uma “moral do Estado”. Baseada em crenças, valores e apoiada numa suposta “razão de Estado”, esta moral visa justificar e, assim, fortalecer a dominação do Estado, e tudo o que ela implica:

“Não há horror, crueldade, sacrilégio, perjúrio, impostura, transa¬ção infame, roubo cínico, pilhagem impudente e imunda traição que não tenha sido ou que não seja cotidiana¬mente realizado pelos representantes dos Estados, sem outra desculpa além desta expressão elástica, simulta¬neamente tão cômoda e tão terrível: razão de Estado!” (Bakunin, 1988, p. 98)

Essa moral do Estado, promovida muitas vezes por meio do patriotismo, esconde das massas essa dura realidade de verdadeiros crimes contra a humanidade, protagonizados para a proteção das classes dominantes.

Contraposta à moral humana, essa moral do Estado é difundida principalmente por dois meios: a religião e a escola. “Durante toda a existência dos Estados”, continua Bakunin (2009a, p. 19), houve sempre “um complemento necessário”, propagado pela Igreja com a religião, para “legitimar e santificar suas conquistas e justificar os atos iníquos, brutais e violentos e as mais monstruosas crueldades”: a religião. Aponta Bakunin (2003b, p. 66), ainda, que as escolas também contribuem com esse processo, ao estimular nos alunos, desde a mais tenra idade, crenças e valores conformes a essa moral de Estado.

Enfim, o Estado é um instrumento político que se relaciona, em todas as esferas, à dominação; e mais ainda, essas dominações articulam-se:

“A riqueza e o poder, a exploração econômica e a opressão política das massas são os dois termos inseparáveis do reino do idealismo divino sobre a terra: a riqueza consolidando e aumentando o poder, o poder descobrindo e criando sempre novas fontes de riqueza, e ambos assegurando, melhor do que o martírio e a fé dos apóstolos, melhor do que a graça divina, o sucesso da propaganda cristã.” (Bakunin, 2000b, p. 51)

Pode-se ver que o Estado funciona como um agente particularmente relevante no estabelecimento da dominação em todos os níveis, num processo de interdependência e reforçamento mútuo dos diferentes tipos de dominação.

Portanto, o modus operandi do Estado, em sua busca do aumento de força para garantir a dominação de classe, implica a dominação em todas as esferas. Algumas delas protagonizadas pelo próprio Estado – como o imperialismo, a coação física e a dominação político-burocrática – e outras delas sendo por ele garantidas, como a exploração do trabalho, ou mesmo por ele estimuladas, como a alienação cultural. Não há como não compreender a afirmação anterior de que “quem diz Estado, diz necessariamente dominação”.


Dominação de classe e burocracia

Ao buscar compreender o caráter da dominação de Estado, Bakunin (2003a, p. 35) já havia notado, num contexto de dominação econômica burguesa, que o Estado constitui uma organização voltada para a dominação de classe e para a manutenção da exploração, em especial por parte da burguesia: o Estado moderno, colocou ele, viabiliza “a organização, na mais vasta escala, da exploração do trabalho em proveito do capital concentrado em pouquíssimas mãos”. Assim, constata o autor que, em distintas ocasiões, a dominação econômica da burguesia termina utilizando o Estado para reforçar-se e que, nesse sentido, o Estado constitui um instrumento político burguês.

Ainda assim, Bakunin (2008a, pp. 94, 105) notou que a Alemanha continuava a apresentar, em 1871, “o estranho quadro de um país onde os interesses da burguesia predominam, mas onde a força política não pertence à burguesia”. Tratava-se de uma situação semelhante à da França, no contexto do golpe de Luis Napoleão em 1851; naquela situação, “o temor [da burguesia] pela revolução social, o horror pela igualdade, o sentimento de seus crimes e o temor pela justiça popular, jogaram toda essa classe decaída [...] nos braços da ditadura de Napoleão III”. Mesmo não estando no controle do Estado, a maior parte dos burgueses envolveu-se “exclusiva, seriamente, ao grande negócio da burguesia, à exploração do povo”, em cuja tarefa “foram eficazmente protegidos e encorajados”. A manutenção do status-quo levada a cabo pelo Estado terminou, naquela circunstância, por favorecer a burguesia que, mesmo não estando diretamente em seu comando, pôde, com a estabilidade, desenrolar amplamente seus negócios e prosperar mais no campo econômico. Ainda que prejudicando alguns burgueses individualmente, esse procedimento favoreceu a burguesia como classe de maneira geral. (Cf. Newman, 2012)

Demonstrou-se que Estado possui uma natureza dominadora; no entanto, o caráter dessa dominação é de classe, mas não exclusivamente da burguesia. Para Bakunin (2000f), “o Estado foi sempre o patrimônio de uma classe privilegiada qualquer: classe sacerdotal, classe nobiliária, classe burguesa; classe burocrática ao final.” Essa afirmação, ao mesmo tempo sucinta e complexa, exige uma avaliação mais pormenorizada.

Desde um ponto de vista histórico, a primeira consideração relevante de Bakunin é que o Estado, mesmo que sempre tenha funcionado como instrumento de dominação de classe, nem sempre foi um Estado burguês; este constitui somente uma das formas históricas do Estado.[3] A segunda consideração é que a nobreza e o clero, mesmo que no processo de surgimento do Estado no século XVI tenham passado à posição de submissão privilegiada, continuaram usufruindo, nos séculos posteriores – mais ou menos, conforme o momento – do instrumento do Estado para a dominação e continuaram a existir – também dependendo do contexto – como classes dominantes. Desde essa perspectiva histórica, portanto, o Estado, desde o século XVI até o século XIX, foi gerido por pessoas vinculadas originalmente ao clero, à nobreza, à burguesia, não sem intensos conflitos.

Compreender o trecho “classe burocrática ao final” implica entender devidamente a teoria bakuniniana das classes sociais. Em Bakunin, a dominação política do Estado é uma dominação de classe, não somente por essa relação direta com as classes dominantes em geral, mas porque ele mesmo tem a capacidade estrutural de produzir outra classe dominante: a burocracia. (Cf. Leval, 2001) Para o autor, os critérios políticos são incorporados à própria definição das classes sociais e em sua maneira de realizar a estratificação social.

Ao discutir os critérios para a definição das classes sociais, Bakunin (2000g) aponta como fundamento principal as noções de dominação e privilégio. Graças à relevância da esfera econômica na dinâmica social, as dominações e os privilégios econômicos constituem critérios fundamentais nessa conceituação: “a propriedade exclusiva da terra”, privilégio da nobreza de seu tempo, e “o monopólio dos capitais e das empresas tanto industriais como comerciais”, privilégio da burguesia de sua época, constituem os fundamentos das dominações econômicas tanto dos proprietários dos meios de produção e distribuição em relação aos trabalhadores assalariados da cidade e do campo, quanto dos proprietários de terras em relação aos camponeses rendeiros ou mesmo pequenos proprietários; a diferença entre ricos e pobres, fundamentada na propriedade do capital, também implica outro privilégio econômico importante e contribui com a dominação de classe. A propriedade dos meios de produção, incluindo a terra, de distribuição e do capital implica, segundo o autor, “a exploração do trabalho sujeitado, ou forçado pela fome, das massas populares” e aumenta, assim, a desigualdade social, fazendo com que os ricos fiquem mais ricos e os pobres mais pobres.

Entretanto, os critérios econômicos não são os únicos nessa conceituação. A burocracia, continua Bakunin (2000g), constitui uma “classe de homens [...] privilegiados” que possui “solidariedade com os interesses do Estado” e, por isso mesmo, devota-se “de corpo e alma à sua prosperidade e sua existência”, por razão do controle de sua administração que possui e de tudo o que isso implica. Ele aponta ainda “o desenvolvimento artificial e forçado da estupidez das massas populares”, privilégio do clero de seu tempo, em função da capacidade que possuía de promover uma determinada de compreensão do mundo. Para Bakunin (2003b, p. 59), outro critério capaz de fortalecer essa visão da realidade é a “diferença de instrução e de educação”, que pode auxiliar a dominação de classe, em que “uma massa de escravos” é subjugada por “um pequeno número de dominadores”. Dessa maneira, o autor aponta, além dos critérios econômicos, outros, que são relevantes para sua definição de classes sociais: a propriedade dos meios de administração, de controle e de coerção, assim como a propriedade dos meios de produção do conhecimento.[4]

Em linhas gerais, os privilégios econômicos implicam exploração do trabalho, os privilégios políticos implicam dominação político-burocrática e coação física e os privilégios culturais implicam alienação cultural.

A luta de classes manifesta-se nas relações sociais particulares entre diferentes agentes em função de sua posição na estrutura social: trabalhadores e patrões, camponeses e latifundiários etc. No entanto, sua manifestação mais relevante constitui-se nas relações sociais gerais, conformadas por dois amplos conjuntos de dominadores e dominados, que extrapolam a estrutura social e envolvem também os interesses e a posição assumida no conflito. Partindo de um universo histórico-conjuntural concreto particular, da Europa do século XIX, Bakunin estabelece um modelo teórico e, portanto, mais abstrato e geral, que propõe reduzir o conjunto de classes sociais concretas de seu tempo a dois amplos conjuntos:

“Todas estas diferentes existências políticas e sociais deixam-se hoje reduzir a duas categorias principais, diametralmente opostas uma à outra, e inimigas naturais uma da outra: as classes políticas, compostas por todos os privilegiados, tanto da terra quanto do capital, ou mesmo somente da educação burguesa, e as classes operárias deserdadas tanto do capital quanto da terra, e privadas de qualquer educação e de qualquer instrução.” (Bakunin, 1988, p. 16)

Ainda que esta citação não inclua todos os critérios utilizados pelo autor em sua definição das classes, ela mostra que as classes sociais concretas de um determinado contexto podem ser reduzidas a dois conjuntos, que estão permanentemente em conflito. Eles são aqui chamados de “classes políticas” e “classes operárias”, mas poderiam ser nomeados, mais adequadamente, de classes dominantes e classes dominadas, classes superiores e classes inferiores, classes privilegiadas e classes despossuídas.

A base dessa redução não é a centralidade dessas categorias num momento histórico determinado e nem sua perspectiva de evolução futura, mas os interesses de classe e o papel desempenhado por essas classes nessa luta de classes mais geral. Esse conflito permanente fundamentado na posição estrutural dos agentes, mas potencializado por sua consciência e suas ações, constitui o conceito bakuniniano de luta de classes.

A burocracia é uma classe social de base política composta por uma minoria privilegiada que possui a propriedade dos meios de administração, de controle e de coerção do Estado. Trata-se, conforme aponta Bakunin (2000b, p. 36), de “um corpo de políticos, privilegiados de fato, não de direito, que, dedicando-se exclusivamente à direção dos assuntos públicos de um país, acabem por formar um tipo de aristocracia ou de oligarquia política”. Seus privilégios – a propriedade do poder, o monopólio das tomadas de decisão políticas – são sempre usufruídos por uma minoria, visto que as maiorias não cabem no Estado; eles são aspectos importantes da burocracia e constituem as bases da dominação por ela exercida.[5]

Conforme o Estado moderno surge e se fortalece, conforma-se a burocracia, que, mesmo oriunda de distintas classes, dá sentido e conteúdo ao próprio Estado, e passa a defender os interesses do próprio Estado, estabelecendo seus próprios interesses como classe a parte, justificados a partir da necessidade de uma administração racional do político. A propriedade dos meios de administração, de controle e de coerção do Estado, além dos benefícios políticos, relativos ao poder, implicam também vantagens econômicas para os membros da burocracia, que pode mais ou menos temporária, constituída por meio da hereditariedade, do recrutamento exclusivo entre determinadas camadas sociais ou eleita “democraticamente” entre a população.

Berthier (2011a, p. 72) enfatiza que “a burocracia pode tender a autonomizar-se em relação ao Estado, do mesmo modo que o Estado tende a autonomizar-se em relação à sociedade”. Essa tendência à autonomização da burocracia forja-se sempre numa tensão permanente com a dinâmica das relações entre Estado e sociedade civil em geral, e entre Estado e classes sociais em particular. Desde uma perspectiva estrutural, há uma tensão constante, mais latente ou manifesta, entre a classe de origem dos membros da burocracia e a própria classe burocrática. Seus interesses, ainda que não se originem mecanicamente de sua posição estrutural, certamente são por ela influenciados e, nesse processo, a tensão entre classe de origem e burocracia mostra-se relevante. Independente desse conflito, a classe burocrática tende a desenvolver interesses próprios, mesmo que buscando conciliá-los com outros.

Na análise histórica que realiza do Estado, Bakunin (2008a) aponta que ele se estabelece como um instrumento de dominação de classe e como resultado do conflito de classes. Nesse processo, forja-se um determinado modus operandi que implica a dominação generalizada e com o qual a burocracia está diretamente vinculada. Bakunin (2003a, p. 77) enfatiza que quando as pessoas passam a administrar o Estado, “a inflexível lógica de sua condição e outras imperiosas razões ditadas por certas considerações de ordem hierárquica e de interesse político se sobrepõem”, visto que “as exigências de uma certa situação são sempre mais fortes do que os sentimentos, as segundas intenções e as boas intenções”. Com o passar do tempo, a estrutura do Estado se fortalece e passa a ter condições de dar continuidade às relações de dominação, visto que consegue, em grande medida, moldar os interesses de seus membros e conformá-los em uma classe social a parte. A estrutura do Estado foi criada para garantir a dominação de classe e assim permanece, independente da vontade dos membros da burocracia, independente de suas classes de origem. “Uma vez integrados nesta classe [classe burocrática]”, continua o autor, esses agentes “tornam-se, de uma forma ou de outra, inimigos do povo”. Mesmo que não queiram, os agentes da burocracia estão condenados a promover a dominação, pois dão corpo a uma estrutura essencialmente dominadora.

A burocracia possui uma existência relativamente autônoma em relação às outras classes dominantes. Sendo a razão de ser do Estado a defesa dos interesses das classes dominantes, conforme aponta Angaut, a atuação da burocracia pode se dar de modos distintos, em sua relação com as outras classes dominantes:

“No primeiro, o Estado defende os interesses de uma das três classes socialmente dominantes (nobreza fundiária, burguesia ou clero) excluindo aqueles do restante da sociedade: conforme o caso, o Estado tomará a forma de uma monarquia feudal, de um regime constitucional censitário ou de uma teocracia. No segundo caso, que parece o mais frequente, ou mesmo o mais determinante para a formação do Estado, as três classes dominantes encontram-se unidas contra as populações que exploram.” (Angaut, 2005, p. 436)

Assim, a burocracia relaciona-se com as outras classes dominantes de duas maneiras: uma, menos frequente, quando ela simplesmente defende os interesses de uma delas, como nos casos colocados e, também, no caso do Estado burguês; outra, mais frequente, quando a burocracia se soma a elas para estabelecer uma dominação concertada sobre as classes oprimidas de maneira geral e que possui base não somente econômica ou mesmo política, mas social, envolvendo todos os tipos de dominação anteriormente discutidos.

Outro aspecto relevante é que Bakunin (2009a, p. 63) reconhece que, em sua dinâmica, por vezes ocorre de o Estado defender os interesses dos despossuídos em relação aos privilegiados: há períodos em que “o governo torna-se ainda mais hostil às classes privilegiadas do que ao povo”. Seu “instinto de conservação” termina por obrigá-lo, em alguns casos, a contrariar a lógica da dominação de classe; ainda assim, “esses períodos não duram muito tempo, pois o governo, qualquer que seja, não pode viver sem as classes e estas sem o governo”.[6]


Tendência à conservação

O Estado tende a manter-se como instrumento político de dominação de classe e a burocracia tende a manter-se como classe dominante, especialmente se a dominação em nível sistêmico-estrutural perdurar.

Viu-se que o Estado constitui parte de uma dinâmica social mais ampla e relaciona-se dialeticamente com a economia e a cultura. Colocou-se, também, que Bakunin (2003a, p. 35) considera que o fortalecimento do capitalismo implica um fortalecimento correspondente do poder de Estado: “a indústria capitalista e a especulação bancária modernas necessitam, para se desenvolverem em toda a amplitude desejada, destas grandes centralizações estatais”. Nesse movimento dialético entre a economia e a política, entre o capitalismo e o Estado, há um fortalecimento mútuo, em que uma das partes, ao mesmo tempo em que reforça, é reforçada pela outra. Bakunin (2003a, p. 134) identifica também um processo semelhante com a cultura: “um verdadeiro culto ao poder de Estado [...] que pouco a pouco engendrou uma doutrina e uma prática burocrática” torna-se fator legitimador relevante da existência do Estado. Como o Estado contribui com o desenvolvimento e a propagação dessas ideias, pode-se dizer que, também, o Estado termina por reforçar e ser reforçado por esses aspectos de construção de uma hegemonia cultural estatista.

Desse modo, as dominações sistêmicas e estruturais promovidas pelo sistema capitalista-estatista não somente se relacionam, mas se reforçam mutuamente. Tendo o Estado passado a funcionar como uma ferramenta para garantir a soberania nacional e a manutenção da ordem, ele tornou-se agente central na garantia da dominação de classe. Na medida em que essa dominação se mantém, independente de quais forem as classes dominantes, o Estado tende a se manter como agente que a garante. Um organismo desse tipo, de acordo com o autor, não atenta mortalmente contra si mesmo e nem sofre atentados mortais por parte das classes dominantes. Mesmo que haja conflitos entre a burocracia e outras classes dominantes, nenhuma delas pode promover a abolição do Estado, sob pena do término de sua dominação de classe.

Para Bakunin (1998, p. 41), “a lei suprema do Estado é a própria conservação do Estado”. Ele tende a conservar-se em função dos interesses das classes dominantes em geral. A burocracia possui interesse direto na perpetuação do Estado e em sua condição de classe, com vistas à manutenção de seus privilégios. De acordo com isso, Bakunin (2009a, pp. 62-63) coloca que o Estado garante, ao mesmo tempo, “a dominação sistemática e legal das classes sobre o povo por elas explorado”, e também visa à “proteção de seus privilégios particulares e da oligarquia que o compõe”. Segundo argumenta, “o primeiro objetivo concerne ao interesse geral das classes privilegiadas” e o segundo “não vai além da vaidade e dos privilégios pessoais dos governantes”. A conservação do Estado e da burocracia relaciona-se, portanto, diretamente com os interesses e privilégios das classes dominantes em geral e da burocracia em particular. Esta última deve proteger-se como classe e renovar as condições para que possa manter sua dominação e, assim, seus próprios privilégios.

Quando fala dos interesses e a vaidade dos burocratas, o autor adentra outro tema essencial por ele abordado, que se poderia chamar, de acordo com a terminologia de Gaston Leval (1976, p. 221), “psicologia dominadora”. O estabelecimento de burocracia possui um efeito estrutural sobre a personalidade dos burocratas, fazendo com que seus sentimentos passem a funcionar em acordo com sua posição de privilegiados.

“Quaisquer que sejam seus sentimentos e suas intenções democráticas, da altura em que se encontram instalados, não podem considerar a sociedade de outra forma senão como um tutor considera seu pupilo. Mas entre o tutor e o pupilo não pode existir igualdade. De um lado, há o sentimento da superioridade, inspirado necessariamente por uma posição superior; do outro, o de inferioridade, que resulta da superioridade do tutor, exercendo seja poder executivo, seja poder legislativo.” (Bakunin, 1998, p. 30)

A burocracia estatal, desse modo, incorpora aos poucos esses sentimentos de superioridade que terminam por estimular outros, relacionados à ambição e à vaidade, que contribuem para que os burocratas queiram manter suas posições, como classe que gere o Estado e como extrato que compõe a burocracia. Os sentimentos originados pela posição superior na hierarquia social, em especial o orgulho de um status diferenciado, possuem efeitos psicológicos reais e aumentam as chances de que os burocratas apoiem a continuidade da estrutura de sistêmica de dominação. Bakunin ainda aponta que quanto maior a falta de oposição e controle, pior essa corrupção psicológica dos burocratas.


Abolição do Estado

A estratégia revolucionária bakuniniana possui respaldo, em ampla medida, em sua teoria do Estado. Conforme sustentado, o Estado implica a dominação generalizada, essa dominação é de classe, a burocracia é uma classe dominante e o Estado e a burocracia tendem à conservação. Coloca Bakunin que, independente daqueles que estejam no comando do Estado, essa lógica continua a reproduzir-se; ou seja, continua a dominação de classe, a dominação política externa e interna, o reforço de outras dominações e a tendência à conservação. Por isso mesmo, um processo que promova o socialismo e a emancipação deve contar, inevitavelmente, com a abolição do Estado. A liberdade e a igualdade só podem ser plenamente atingidas por meio de uma revolução social que ponha fim à dominação em geral e à dominação de classe em particular; que implique, portanto, o fim do capitalismo, das classes sociais e do Estado.

É com base nesse raciocínio que o autor critica duramente as estratégias estatistas, em especial as do campo socialista. Para ele, por meio da tomada do Estado é impossível se chegar ao socialismo e à emancipação popular. Pode-se dizer, sem exagero, que para Bakunin, ocupar o Estado para promover a emancipação social dos trabalhadores equivale a tornar-se patrão para tentar acabar com a exploração do trabalho.

Primeiramente, porque o Estado é, por definição, um organismo de minorias e, dessa maneira, é impossível as classes oprimidas de maneira geral, e mesmo o proletariado, como classe, tomarem o Estado. Para Bakunin (2003a, p. 212), as maiorias não cabem no Estado; falar em “proletariado organizado como classe dominante” implicaria “que este, por inteiro”, esteja “na direção dos negócios públicos” e, assim, “não haverá governo, não haverá Estado”. Um organismo político de maiorias, que termine com a cisão entre minoria governante e maioria governada, qualquer que seja ele, já não constitui um Estado.

Em segundo lugar, com um ponto de vista bastante materialista, Bakunin (1998, p. 31) recorda: “nunca esqueçamos que as posições e as necessidades que elas impõem são sempre mais poderosas do que o ódio ou a má vontade dos indivíduos”. Para ele, se o Estado constituísse “um parlamento, exclusivamente composto de operários, esses operários, que hoje são firmes democratas socialistas, tornar-se-iam imediatamente aristocratas determinados, adoradores intrépidos ou tímidos do princípio de autoridade, opressores, exploradores”. Isso porque se tornariam classe burocrática e tenderiam a abandonar seus interesses de classe anteriores para concertar-se com outras classes dominantes no processo de dominação generalizada ao qual se relaciona à própria existência do Estado.

O autor afirma ainda que, mesmo com o fim de outras classes, no caso de o Estado continuar a existir e de se nacionalizarem os meios de produção, o Estado criaria, por si mesmo, uma única classe dominante, a burocracia, que tenderia a manter a dominação na sociedade. Posição sustentada em seu debate com marxistas e lassalianos:

“Assim, sob qualquer ângulo que se esteja situado para considerar esta questão, chega-se ao mesmo resultado execrável: o governo da imensa maioria das massas populares por uma minoria privilegiada. Esta minoria, porém, dizem os marxistas, compor-se-á de operários. Sim, com certeza, de antigos operários, mas que, tão logo se tornem governantes ou representantes do povo, cessarão de ser operários e colocar-se-ão a observar o mundo proletário de cima do Estado, não mais representarão o povo, mas a si mesmos e a suas pretensões a governá-lo.” (Bakunin, 2003a, p. 213)

Há, enfim, elementos para compreender integralmente a afirmação anterior do autor, de que “o Estado foi sempre o patrimônio de uma classe privilegiada qualquer: classe sacerdotal, classe nobiliária, classe burguesa; classe burocrática ao final.” Quando ele se refere à “classe burocrática ao final”, contrapõe a possibilidade de uma possível tomada do Estado pelos socialistas, advertindo que, se isso ocorresse, um setor dos trabalhadores se transformaria em classe burocrática e daria continuidade à dominação na sociedade, mesmo que modificando alguns de seus fundamentos. A dominação de trabalhadores do campo e da cidade, dos camponeses, dos pobres em geral, entretanto, cerne do processo, seria continuada. E mesmo que se sustentasse, discursivamente, que esse seria um processo temporário, de transição, a tendência à conservação do Estado e da burocracia, fortalecida pela continuidade da dominação, transformaria o provisório em definitivo e o Estado nunca teria fim.[7]

Bakunin (2009b, pp. 22, 31) não precisou esperar a Comuna de Paris, de 1871, para apontar, cinco anos antes dela, a necessidade de “abolição, dissolução e bancarrota social, política, judiciária, burocrática e financeira do Estado tutelar, transcendente, centralista, dublê e alter Ego da Igreja”, assim como reivindicar que “a base de toda organização política de um país deve ser a comuna absolutamente autônoma, representada sempre pela maioria do sufrágio de todos os habitantes – homens e mulheres em igualdade – maiores”. Em seguida à experiência communard, Bakunin (2008c, p. 118) afirmou seu apoio à experiência revolucionária francesa, sublinhando: “Sou um partidário da Comuna de Paris [...] sobretudo porque ela foi uma negação audaciosa, bem pronunciada, do Estado.”

Segundo a teoria bakuniniana da revolução, um processo de transformação social deveria extrapolar o modelo de revolução política, que vinha implicando a simples troca dos governantes do Estado e a continuidade da dominação, e avançar para uma revolução social, que modificasse não somente a estrutura econômica da sociedade – socializando a propriedade e acabando com a exploração do trabalho nas cidades e nos campos –, mas que também abolisse o Estado, a Igreja e as próprias classes sociais, favorecendo um protagonismo popular construtivo capaz de estabelecer um federalismo libertário em todas as esferas sociais.

“É precisamente a esse sistema antigo da organização pela força que a revolução social deve pôr um termo ao devolver sua plena liberdade às massas, aos grupos, às comunas, às associações, aos próprios indivíduos, e, destruindo, de uma vez por todas, a causa histórica de todas as violências, a potência e a própria existência do Estado, que deve arrastar em sua queda todas as iniquidades do direito jurídico, com todas as mentiras dos cultos divinos, esse direito e esses cultos tendo sido sempre a consagração obrigatória tanto ideal quanto real de todas as violências representadas, garantidas e privilegiadas pelo Estado.” (Bakunin, 2008c, p. 126)

A Comuna, segundo a compreendeu o autor, em especial pela influência dos internacionalistas ligados à Associação Internacional do Trabalho, caminhava nesse sentido, até ser esmagada pelo Estado; tratava-se de uma revolução social que estava em processo de abolição plena do Estado e de sua substituição por organismos populares de base e federalistas. A Comuna não somente não modificou a teoria da revolução de Bakunin como a reforçou; pareceu-lhe um caminho correto no sentido de atingir a liberdade e a igualdade plenas.


* Texto originalmente publicado no livro “A Destruição do Leviatã: críticas anarquistas do Estado”, organizado por João Gabriel da F. Mateus e Marcos A. M. Ataides, e publicado pela Faísca Publicações em 2014.


Notas

1. Num estudo como Estatismo e Anarquia (Bakunin, 2003a), por exemplo, que possui pouco mais de 250 laudas, Bakunin recorre às classes sociais nominalmente mais de 30 vezes; elas constituem, sem dúvidas, uma das categorias de análise mais relevantes do autor nesta e em outras obras.

2. Apesar de este enunciado assemelhar-se, à primeira vista, ao bastante difundido conceito de Estado como “poder organizado de uma classe para opressão de uma outra”, colocado por Karl Marx e Friedrich Engels (2010, p. 89) no Manifesto Comunista, ele possui diferenças fundamentais, que implicam não somente distinções teóricas centrais com o marxismo, mas também rupturas estratégicas inconciliáveis.

3. Conforme aponta Bakunin (2008a) em sua análise histórica, o Estado moderno constitui-se no século XVI e a burguesia, desde o início de sua ascensão no século XIV até a Revolução Francesa, no século XVIII, foi oprimida pelo Estado. Foi somente a partir de então que ela passou a utilizá-lo, mais constantemente, em seu próprio favor. Mesmo depois da Revolução Francesa, como demonstram os casos mencionados da França e da Alemanha, essa relação entre Estado e burguesia não pode ser direta e permanentemente sustentada.

4. Tomando em conta o século XIX analisado por Bakunin, as classes dominantes – ou “classes privilegiadas” / “classes superiores”, como em geral ele as chama – incluíam: a nobreza/latifundiários (proprietários das terras), a burguesia (proprietária dos meios de produção e do capital), burocracia (proprietária dos meios de administração, coerção e controle) e clero (proprietário dos meios de produção do conhecimento). As classes dominadas abarcavam: proletariado da cidade e do campo (trabalhadores assalariados), campesinato (rendeiros ou pequenos proprietários) e marginalizados (desempregados, mendigos, miseráveis, analfabetos, ladrões etc.). Obviamente há frações de classes e “zonas cinza” que se colocam entre essas grandes categorias.

5. Berthier (2011a, p. 72) complementa essa definição, tomando por base a análise de Bakunin da burocracia alemã: “A burocracia é em primeiro lugar uma emanação do Estado, sua base social, a camada que sustenta a ilusão da racionalidade e da necessidade do Estado. É ela que faz do Estado uma realidade, um poder efetivo que lhe dá um conteúdo. A burocracia encarna a ideia do Estado ao mesmo tempo que é seu aparelho. [...] A burocracia acaba por confundir-se com o Estado, com sua cascata de hierarquias constituindo o que Bakunin denomina ‘corpo sacerdotal do Estado’.”

6. Segundo a explicação de Angaut (2005, p. 437), isso ocorre em algumas circunstâncias, quando a burocracia, fazendo com que o Estado intermedeie os conflitos de classe, atenta contra interesses das outras classes dominantes em nome da garantia de longo prazo da continuidade da dominação de classe. Isso não se estabelece por um interesse do Estado em defender as classes dominadas, mas pela necessidade de se garantir o funcionamento do sistema. Por isso, ele atenta, em situações determinadas, contra os interesses das classes dominantes, seja a sua totalidade, a uma delas ou a alguns de seus membros em particular.

7. Não é um mero acaso que o processo decorrente da Revolução Russa de 1917 tenha caminhado nesse sentido. Assim como também não é o fato de que todos os processos de revoluções comunistas levados a cabo durante o século XX tenham tido o mesmo destino. Há elementos para afirmar que a história do século XX comprovou a acuidade e a precisão da teoria bakuniniana do Estado, em detrimento de teorias marxianas e mesmo marxistas. Esse parece um bom argumento para refutar a tese de que Bakunin foi um homem de ação e não um teórico de substância e fôlego.


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