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Ideologia, Materialismo e Poder

category brazil/guyana/suriname/fguiana | movimento anarquista | opinião / análise author Sunday June 14, 2015 23:19author by Coletivo Anarquista Zumbi dos Palmares (CAZP) - Coordenação Anarquista Brasileira (CAB) Report this post to the editors

Documento político teórico anarquista. Alagoas, 2015

O anarquismo, nascido no calor das lutas sociais do século XIX, sempre bem delimitou seus princípios desde um plano organizativo. As ideias de federalismo e de autogestão, senão exclusivas do anarquismo, tiveram em nossa corrente socialista um espaço desde as suas bases e se constituindo em princípio ativo, organizador de sua prática política e ponto de partida de suas elaborações teóricas. Assim, consideramos que o anarquismo se constitui enquanto ideologia e prática política.
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1. ANARQUISMO, TEORIA E IDEOLOGIA

O anarquismo, nascido no calor das lutas sociais do século XIX, sempre bem delimitou seus princípios desde um plano organizativo. As ideias de federalismo e de autogestão, senão exclusivas do anarquismo, tiveram em nossa corrente socialista um espaço desde as suas bases e se constituindo em princípio ativo, organizador de sua prática política e ponto de partida de suas elaborações teóricas. Assim, consideramos que o anarquismo se constitui enquanto ideologia e prática política.

O legado deixado pelos autores clássicos do anarquismo, ainda que naturalmente insuficientes para a compreensão do hoje, não perderam vitalidade, especialmente tomando em conta a apreensão de seus fundamentos para estabelecer uma base teórica para a realidade contemporânea. Clássicos são assim chamados, nem tanto pelo pioneirismo, mas pela força e resistência que suas elaborações possuem no enfrentamento prático-teórico com a realidade histórico-social. Nascidos em circunstância de formação e expansão do sistema capitalista, inauguraram toda uma obra a ser continuada – sem abdicar da crítica tão necessária quanto salutar. Certamente, é de nosso desejo que muitas das ideias anarquistas e socialistas percam a importância para entender a realidade que nos cerca, mas estamos convictos que isso só será possível quando banirmos todo mecanismo de exploração e dominação da sociedade.

Enquanto isso não é realizado, acreditamos que os clássicos do anarquismo ainda têm muito a nos ensinar e é com base neles que partimos de construir elementos teóricos que permitam ter uma concepção de mundo e algumas ferramentas para desvelar a cortina de fumaça por trás das relações de classe. Ferramentas que não se fecham as contribuições contemporâneas, nem ao diálogo – sempre que necessário e possível – com toda a contribuição na busca sem fim por uma leitura mais expressiva possível da realidade histórico-social. Nesse empreendimento, necessário esclarecer a delimitação, não estanque e mecânica, mas articulada entre teoria, ideologia e prática política.

A Teoria, vinculada ao conhecimento da realidade, é um legado histórico-social e, assim, possui suas limitações. Sendo o conhecimento patrimônio histórico-cultural da humanidade, o parâmetro para a incorporação das contribuições teóricas existentes não é a qualificação entre o que é anarquismo e o que não é. No entanto, é sob o horizonte de radical transformação social que partimos de entender a realidade e intervir perante ela. Portanto, não será qualquer teoria ou quaisquer conceitos que nos servem.

É preciso também compreender as relações de mútua dependência e influência entre teoria e método e entre prática política e ideologia que aqui decompomos em dois campos apenas para fim didático-analítico, mas, reforçamos, representam na verdade uma unidade e assim deve ser pensada. Neste sentido, o que poderíamos chamar de campo da ciência (teoria/método) e o campo da vontade e subjetividade (ideologia e prática política) se determinam dentro de seus campos e de um campo para outro, compondo, portanto, uma unidade em que não havendo o entendimento de sua totalidade teremos distorções.

Em relação à ideologia, esclarecemos que trabalhamos no sentido de que esta é vinculada às condições histórico-sociais, porém não emana mecanicamente delas. A ideologia, então, é tomada enquanto um corpo de ideias, valores e modos de percepção. A ideologia, neste sentido, não é apenas “falsa consciência”. Sejam falsas ou verdadeiras, dissimuladas ou não, as ideias, os valores e os modos de percepção e apreensão da realidade representam interesses práticos e ao tempo em que influi na produção teórica – em seu processo de formulação conceitual e de seleção dos elementos e fatos da realidade – representam a própria síntese de fundamentos teóricos. A ideologia é um componente não científico, mas presente na própria produção do conhecimento, sendo, desde o ponto de vista de uma perspectiva de mudança revolucionária na sociedade, um componente indispensável que serve como estímulo à prática política ao mesmo tempo em que se inter-relaciona com o pensar sistemático, teórico, em todo o seu processo.

Como estímulo à prática política, queremos dizer que não será o mero combate ideológico que provocará mudanças sociais, uma vez que é “a ideia que deve animar a vontade, mas que são necessárias determinadas condições para que a ideia possa nascer e agir” (MALATESTA, 1989, p. 141). Assim, voltamos à necessidade de apreensão da realidade teoricamente para melhor situar a ação político-social e o necessário combate ideológico. Como nos ensina o Huerta Grande da FAU: “Entre teoria e ideologia existe uma vinculação estreita, já que as propostas destas se confundem e se apoiam nas conclusões da análise teórica. Uma ideologia será tanto mais eficaz como motor da ação política, quanto mais firmemente se apoie nas aquisições da teoria”.

A Teoria estando vinculada à ideologia e sendo desenvolvida a partir da existência de uma prática política (e nunca há ausência desta, mas sim formas diferenciadas de exercê-la) não pode servir de justificativa para esta. A Teoria, antes de tudo, orienta e precisa esta prática política e não o inverso. Isso ocorre porque a realidade não pode ser concebida para além das aparências sem que passe pelo crivo da análise teoricamente orientada. Se a realidade, na totalidade de suas determinações, pudesse ser apreendida de maneira imediata, sem a intervenção do pensar sistemático e articulado, não haveria razão para a existência de ciência. O senso prático e a experiência imediata seriam suficientes, porém, sem desmerecê-los, eles podem ser – e por vezes são – enganosos.

Ainda assim, é preciso compreender que a realidade é maior que o conhecimento que podemos ter dela. Recorrendo mais uma vez ao Huerta Grande (FAU): “A luta dos explorados não esperou a elaboração do trabalho teórico que desse razão para ela desencadear-se. Seu ser, sua existência, foi anterior ao seu conhecimento, à análise teórica de sua existência”. Por isso, cabem às teorias e à própria ciência iluminar a vida, não governá-la, tal como sempre defendeu Bakunin.

O pensamento científico, por sua vez, não pode ser compreendido descolado do seu contexto histórico-social. Desta feita, o homem está “sempre forçado a contentar-se com a ciência do seu tempo” (BAKUNIN, 1977b, p. 253). O socialismo e o anarquismo não são ciência, mas se valem da ciência, produzem também ciência/teoria. O próprio processo de produção do conhecimento é produto do contexto histórico-social, da luta de classes, das presentes relações de força e dominação. Evidente, que o que aqui afirmamos representa uma tomada de posição e concepção a respeito das relações e determinações entre teoria, ideologia e prática política, onde partimos do seguinte pressuposto: “a ciência compreende o pensamento da realidade, não a realidade em si mesma; o pensamento da vida, não a vida” (Id., 2000, p. 61). Às criações da vida cabe à própria vida.

Não só os meios determinam os fins e o objetivo determina o método, mas a prática política e a ideologia também serão determinantes na definição da maneira que pensamos e lidamos com a Teoria. Não basta apenas estarmos dotados de um profundo conhecimento da realidade. Ainda que este seja pré-requisito para ter condições de operar uma transformação social, a maneira de construí-la, de interceder diante da realidade que se pretende mudar, será determinante e pode até mesmo fazer da teoria uma mera abstração.
Está no campo da ciência a análise que permite apontar a possibilidade de construção do socialismo, tal como a identificação de frações das classes oprimidas como estrategicamente melhor posicionadas para efetivar essa transformação. Sendo que as formas concretas de postular esta transformação não estão nesse campo, e sim mais estritamente vinculadas à prática política adotada e à ideologia construída. Em outros termos, se a teoria faz apontamentos gerais a respeito de entender (para transformar) a realidade histórica, ela não define seu processo (presença ou não de protagonismo popular, por exemplo).

“A ciência mais racional e mais profunda não pode adivinhar as formas que a vida social assumirá no futuro. Ela pode apenas definir fatores negativos, que decorrem, de modo lógico, de uma rigorosa critica da sociedade atual. Assim, a ciência socioeconômica, procedendo a esta critica, chegou à negação da propriedade individual hereditária, por conseguinte, ao conceito abstrato e, por assim dizer, negativo, da propriedade coletiva como condição necessária do futuro sistema social (Bakunin, 2003).”

Apoiados em Bakunin, repetimos: às criações da vida cabe à própria vida. Por isso, nossa ideologia e a prática política devem apontar para um processo de transformação que articule o conjunto dos oprimidos, para que estes sejam protagonistas das mudanças de suas próprias vidas. Um processo que abra um horizonte socialista e libertário não se constrói com vanguardas (auto)eleitas e pretensamente mais esclarecidas, nem mesmo hierarquizando e dividindo as classes oprimidas, mas sim articulando e construindo os sujeitos da mudança, em seu conjunto e desde as suas bases, com as suas contradições, limites e potencialidades.


2. CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS

O desenvolvimento da sociedade, ou seja, a história da humanidade, obviamente não decorre de um único fator. As determinações a qual a sociedade constrói seus elementos são diversas e não são estáticas, apresentam transformações no tempo e no espaço. O complexo de relações de interdependência e a multicausalidade dos fatores ou conjunto de fatores estão também associados e em relação ao tempo e ao espaço, portanto, apresentando mudanças nos elementos preponderantes, na profundidade e complexidade.

Quando nos referimos às mudanças de preponderância, profundidade e complexidade, dadas no tempo e no espaço, entre os fatores e conjuntos de fatores que atuam na sociedade, queremos enfatizar que as diferentes épocas e modos de vida social apresentam questões e dilemas próprios, específicos de sua época e modo de vida.

Procurando estabelecer uma leitura a respeito da unidade no universo através de uma base real e comum, Bakunin compreendia que o mundo estar imerso em complexas e amplas relações de interdependência. Em Considerações filosóficas..., afirma Bakunin:

“Tudo o que existe, os seres que constituem o conjunto indefinido do Universo, todas as coisas existentes no mundo, qualquer que seja sua natureza, sob os aspectos da qualidade como quantidade, grandes, médias ou infinitamente pequenas, próximas ou imensamente distantes, exercem, sem o querer e sem mesmo poder pensar nisso, umas sobre as outras e cada uma sobre todas, seja imediatamente, seja por transição, uma ação e uma reação perpétuas que, combinando-se num único movimento, constituem o que chamamos de solidariedade, vida e causalidade universais. (BAKUNIN, 1988; p. 57)”

Esta chamada causalidade universal, a que Bakunin se refere para explicar a unidade no universo, não é uma causa absoluta e primeira. Ela é mais uma “resultante produzida e reproduzida sempre pela ação simultânea de uma infinidade de causas particulares” onde “cada ponto atuando sobre o todo (aqui o universo é produzido), e o todo atuando sobre cada parte (aqui o universo é produtor ou criador)” (1977, p. 186). Trata-se da unidade real do universo, que não sendo nem pré-determinada, nem pré-concebida, é a eterna transformação, sem começo, limite ou fim: é a negação de “Deus”, pois com um “legislador” impondo arbitrariamente suas leis não poderia existir tal unidade. Se existe ordem no mundo, não significa dizer que existe um “ordenador”, em especial.

Portanto, é este movimento, o qual Bakunin denomina de causalidade universal, quem forma todos os mundos, a própria natureza, desde o mundo mineral até o animal (incluído o homem). O homem se insere nesta cadeia de relações e transformações mútuas e está submetida à mesma. Por isso o anarquista russo afirmou: “[...] o homem com sua inteligência magnífica, suas ideias sublimes e suas aspirações infinitas, nada mais é, como tudo o que existe neste mundo, que um produto da vil matéria.” (BAKUNIN, 2000, p. 13).

É a partir deste ponto, o homem produto da matéria, que queremos iniciar este debate com intenção de construir algumas indicações filosóficas, enquanto concepção de mundo, e teórico-metodológicas, para a compreensão da vida humano-social.

Quando Bakunin afirma que somos matéria não parte de uma compreensão materialista da realidade de forma mecânica, concebendo a vida como natimorto, nem elimina a pluralidade de fatores que convergem na formação das sociedades. A relação entre matéria e ideia é fruto ainda hoje de grandes polêmicas, assim como foi no passado. As dualidades e oposições criadas entre o que se chama de material e o que se refere como mundo das ideias, do simbólico, mais dificultam do que ajudam a entender.

Em seu tempo, Bakunin afirmava:

“Desgraçadamente, estas palavras matéria, material, tem-se formado em uma época em que o espiritualismo dominava, não só na teologia e na metafísica, senão na própria ciência, o que fez com que, sob o nome de matéria, se formasse uma ideia abstrata e completamente falsa de algo que seria não só estranho, senão absolutamente oposto ao espírito; e é precisamente esta maneira absurda de entender a matéria o que prevalece ainda hoje, não só entre os espiritualistas, senão também entre os muitos materialistas. É por isso que muitos espíritos contemporâneos rechaçam com horror essa verdade, incontestável, sem dúvida, de que o espírito não é outra coisa que um dos produtos, uma das manifestações do que chamamos matéria. Para nós, a matéria não é de nenhum modo esse substrato inerte produzido pela abstração humana: é o conjunto real de tudo o que é, de todas as coisas realmente existentes, incluindo as sensações, o espírito e a vontade dos animais e dos homens. (BAKUNIN, 1977, p. 267)”

Dentro deste quadro de análise considera-se, portanto, uma compreensão equivocada colocar as ideias, as vontades e as sensações como manifestações opostas ou mesmo completamente autônoma do chamado mundo material. Seguindo os passos de Bakunin (s.d., p. 54-55), “o homem é matéria, e não pode impunemente desprezar a matéria”, assim como é um animal, e assim “não pode destruir a sua animalidade”. Porém, sob esta condição de animalidade, o homem “pode e deve transformá-la e humanizá-la pela liberdade”. Para entender a vida social e o seu desenvolvimento (seja qual for a direção deste) é preciso compreender como se produz e se reproduz esta vida social. E para compreender a produção e reprodução desta vida social é preciso voltar-se para as bases e condições de existência da vida social. Esse ponto é fundamental.

No texto intitulado por Deus e o Estado, Bakunin inicia afirmando que:

“Três elementos ou três princípios fundamentais constituem, na história, as condições essenciais de todo o desenvolvimento humano, coletivo ou individual: 1º a animalidade humana; 2º o pensamento; 3º a revolta. À primeira corresponde propriamente a economia social e privada; à segunda a ciência; à terceira a liberdade (BAKUNIN, 2000, p. 13).”

O primeiro ponto estabelecido é a animalidade humana. O tema da humanização do homem é recorrente em escritos de Bakunin. Para o anarquista russo, isto é um processo, uma conquista histórica e um ato material, prático. O homem só se torna homem, a partir do momento em que se diferencia dos demais animais. Este fato é uma conquista material, um ato prático, que se realiza através do trabalho e do desenvolvimento do pensamento, das ideias e da palavra. Como qualquer ser, o homem precisa garantir as condições de sua reprodução. Porém, o homem humanizado, transformado em ser social, possui determinações específicas, especialmente porque este ser social não apenas reproduz sua vida, mas ele próprio produz, cria e transforma o meio e a si mesmo como nenhum outro.

Todavia, ele não rompe completamente com sua animalidade, uma vez que está também submetido, agora sobre graus diferentes, as determinações químicas, físicas e biológicas. É preciso destacar que o homem, em sua evolução natural, desenvolveu características biológicas fundamentais para criar as condições necessárias para o seu desenvolvimento enquanto ser social. Estas características vão desde a posição de sua coluna vertebral que o possibilita andar de forma ereta, passando pelo formato de suas mãos que o permite manusear objetos com maior precisão e sua estrutura vocal que permite a emissão de sons articulados, chegando ao elevado grau de complexidade e especialização neurocerebral que desenvolveu. Por isso, autores como Murray Bookchin (2010, p. 122) chega a considerar que “as grandes realizações do pensamento humano, a arte, a ciência e a tecnologia, não servem apenas para monumentalizar a cultura, servem também para monumentalizar a própria evolução natural”.

Sob estas condições de evolução natural, de evolução dos seres orgânicos, o gênero humano pode transformar-se em um ser social e nesta qualidade o diferencia dos demais seres por passar a apresentar novas determinações em seu devir histórico. A existência de coletividades e de organização, que se nos for permitido a licença do termo, de “sociedades”, é constatada em outros seres, não somente humanos. Insetos como abelhas e formigas formam grandes coletividades com divisões de funções.

Porém, ao contrário do ser humano – enquanto ser social – estes animais são determinados substancialmente em função de sua carga genética e herança biológica. São estes elementos que definem seus padrões de comportamento, padrões estes que são consideravelmente resistentes ao tempo e ao espaço. Assim, o que uma abelha ou uma formiga fazem hoje é basicamente o mesmo que fazem a milhares de anos. A situação repete se pegarmos animais de uma mesma espécie e situados em locais diferentes, sem contato um com o outro: seus padrões de comportamento serão similares. Assim, a relação dos animais não humanos com o meio, com a natureza (exterior), não é de transformação, ao menos não na profundidade da ação humana, sendo muito mais de adaptação.

Por sua vez, o homem, transformado em ser social, experimentou diversas formas de organização social, tal como diferentes padrões de comportamento. Se há também a permanência, por outro lado, destaca-se e distinguem-se as mudanças e transformações ocorridas, no tempo e no espaço, na sociedade humana. Nesse sentido, as determinações de sua sociabilidade adquirem o fator primordial para definir os padrões de comportamento do homem, onde estas não são naturais, mas eminentemente históricas e sociais, tendo o aprendizado por meio de práticas e assimilação de códigos, símbolos e linguagens um fundamental papel. É preciso compreender a especificidade deste mundo histórico-social.

Portanto, se entendemos a vida social, inserida no complexo de relações de interdependência e multicausalidade, o fazemos a partir das condições de existência, condições estas que não estão dissociadas de suas dimensões históricas e culturais, do tempo e do espaço.

Para Bakunin são as condições materiais de existência (que não podem ser confundidas ou reduzidas apenas como relações de produção e troca de mercadorias) a base concreta de toda a sociedade. Isso significa dizer que o que define os limites e as possibilidades do desenvolvimento humano em toda a sua amplitude (econômica, intelectual, moral, cultural, política, etc) é, em última instância, a forma como (e com que meios) os homens produzem e reproduzem sua vida social.

Desta forma, entendemos que a realidade histórico-social pode ser compreendida em variados aspectos ou esferas, desde um ponto de vista mais puramente econômico, cultural, ideológico, etc.. Porém, é preciso afirmar que estas são dimensões de uma única realidade dialeticamente estruturada. Justamente por se apresentar como uma realidade dialeticamente estruturada que a leitura e compreensão da sociedade, desde o ponto de vista de uma totalidade social, é não somente desejável, como possível.

Retomando os eixos de análise propostos por Bakunin (animalidade/economia; pensamento/ciência; revolta/liberdade) e dando a eles o seu necessário desenvolvimento, a história humana “aparece então como a negação revolucionária do passado, algumas vezes apática e indolente, e outra apaixonada e poderosa” (Id., 1990, p. 209). Ainda que a relação seja dialética, não é à toa que o primeiro elemento ou princípio de desenvolvimento humano pontuado por Bakunin seja posto na relação “animalidade humana/economia”.

Em Considerações filosóficas... Bakunin expõe a determinação que esta possui diante das possibilidades humanas, que não são ilimitadas. Podemos viver sem música, sem livros, teatros, cinema, futebol entre uma infinidade de coisas. Porém, não podemos viver uma semana sequer sem garantir a organização da produção, distribuição e consumo de bens materiais, em qualquer sociedade que seja. Mesmo porque, sem a garantia de produção destes, não há violão, não há papel, tijolos, cimento, borracha etc.. Todos estes elementos não são apenas matéria, mas conhecimento e ideias.

Por isso, a luta pela vida é o ponto de partida da vida animal e a garantia de seu desenvolvimento (Id., 1977b, p. 197). Sem a garantia de satisfação destas condições não há vida animal ou o homem não poderá se desenvolver quanto às possibilidades de construção de uma vida menos dependente das sujeições dos fenômenos da natureza externa, rompendo sua bestialidade, sua animalidade. Entende Bakunin que o mundo ideal representa a “última e mais alta expressão de sua vida animal” (Id., 1977b, p. 199). Como já dissemos mais acima, a humanização do homem é um ato prático, uma conquista material, realizada pelo trabalho e iluminada pelo pensamento.

A “potência de abstração” na vida humana é o que vai permitir aos homens “conceber a ideia de totalidade dos seres, do universo e do infinito absoluto” (Ibid., p. 202). Se não existisse tal possibilidade não poderia existir o mundo histórico e social, mas o homem não é aquilo que ele pensa ser, pois “toda coisa não é mais do que o que faz” sendo “sua ação e seu ser um só” (Ibid., p. 291). É na sua ação que o homem se constrói e, portanto, esta potência de abstração é formal. Assim, o fator determinante (ou fundante) para a construção do mundo histórico e social é a ação humana frente a matéria que tem como mediação o trabalho de transformação da natureza exterior. Esta é a objetividade da relação entre o homem e a matéria, entre sujeito e objeto.

No entanto, a objetividade da realidade não subtrai a subjetividade construída historicamente num dado meio social, ainda que esta seja determinante na construção da própria subjetividade, do imaginário e valores ideológicos de um povo. Pois, se por um lado “a vida natural e social, precede o pensamento” (Id., 2003, p. 167), por outro, a concretude das relações sociais não exclui a variável da subjetividade a incidir nestas formas concretas de relações econômicas, políticas e culturais existentes na sociedade.

Esta variável enquadra-se no que Bakunin (2001, p. 85) chamou de “temperamento histórico” e “hábitos sociais” de um povo em questão, que produz ideologias e práticas sociais, e que também determina seu grau de consciência, ou, nos dizeres de Bakunin, “a intensidade do instinto de revolta” (Id., 2001, p. 40). Ou seja, corresponde aos pontos 2 e 3 (pensamento/ciência e revolta/liberdade) da citação inicial de Bakunin que abre este tópico, porém, sob as bases e em relação dialética ao ponto 1 (animalidade/economia).

A atuação destes elementos no desenvolvimento histórico de um povo ou da humanidade exerce uma “influência considerável sobre seus destinos, e até mesmo sobre o desenvolvimento de sua força econômica” (Ibid., p. 40).

A análise materialista abarca a chamada animalidade dos homens (as formas e os meios de sua produção e reprodução social), a produção da ciência e das ideias e a própria luta de classes. Todos estes elementos abrangem um aspecto político-ideológico e devem ser compreendidos enquanto eixos de uma mesma análise.

Por isso, afirmamos que estão nas condições materiais de existência a base de compreensão dos aspectos econômicos, políticos, culturais e ideológicos da realidade social. Estas condições materiais de existência devem ser a expressão de uma interação/determinação entre as condições mais elementares da vida social, como os meios de produção e instrumentos de trabalho, o consumo e a troca, com as ideias e práticas socialmente produzidas em contato com esta realidade “primária”.

O essencial é compreender que está na ação humana, fundamentalmente em sua produção e reprodução da vida social, a fonte da produção das ideias e práticas sociais – transformadoras ou conservadoras.

O debate aqui levantado muitas vezes torna-se polêmico, com justificadas oposições e resistências, uma vez que foi sob o manto de uma “análise dialética e materialista” que o socialismo, especialmente por vertentes marxistas, foi levado, entre outros fatos, para negociar direitos dos trabalhadores no parlamento burguês com os reformistas e a social-democracia clássica, abraçou – sob os desígnios de Lênin – as ideias de Taylor como “organização científica do trabalho” na Rússia do governo bolchevique, “justificou” as mais torpes práticas imperialistas e tomou partido de um lado em guerras entre Estados capitalistas (incluso Marx, como foi o caso da colonização inglesa na Índia e da guerra franco-prussiana).

Como sabemos, a relação entre teoria, ideologia e estratégia não são mecânicas, mas necessariamente são próximas e influentes entre si. O que reforça a ideia da compreensão do anarquismo fundamentalmente enquanto uma ideologia política.

A ciência/teoria nos permite, ou deve nos permitir, compreender as conexões e os nexos causais entre os diversos fatores e o conjunto de relações sociais com perspectiva de uma visão de totalidade social. É preciso esclarecer que ter uma visão de totalidade não significa ter uma visão de todos os fatos da sociedade. Conhecer a totalidade social não é conhecer tudo o que existe, mas sim, captar sua essência, os pontos nos quais são preponderantes e capazes de produzir efeito maior em seu conjunto. Há concordância com Karel Kosik, autor de Dialética do concreto, quando este afirma que:

“[...] totalidade não significa todos os fatos. Totalidade significa: realidade como um todo estruturado, dialético, no qual ou do qual um fato qualquer (classes de fato, conjuntos de fato) pode vir a ser racionalmente compreendido. Acumular todos os fatos não significa ainda conhecer a realidade; e todos os fatos (reunidos em seu conjunto) não constituem, ainda, a totalidade.” (1986, p. 43-44)”

A generalidade científica não provém das abstrações em todos os detalhes da vida, mas sim da “coordenação dos detalhes”. (Bakunin, 1977, p253). Assim, as condições materiais de existência oferecem o ponto de partida, a perspectiva de totalidade e de uma análise mais profunda, mas que não pretende exaurir e dissecar a realidade em todos os seus detalhes e pormenores.

As ideias enquanto representações da vida social estão intimamente ligadas às condições de existência e exprimem suas contradições, assim como as disputas e interesses de agentes, grupos e classes. A ciência social, sendo um conhecimento sistematizado e aprofundado da realidade social, também responde e corresponde aos interesses e as necessidades postas em cada contexto histórico-social.

O homem sempre buscou explicação para o mundo que o cerca. A curiosidade e a sede de explicar os fenômenos da natureza e da sociedade é um fator e elemento decisivo para que a humanidade pudesse conhecer um desenvolvimento intelectual e tecnológico. Assim, o conhecimento é uma produção histórica onde a ciência é um de seus ramos. De explicações místicas e fantasmagóricas – o despertar da razão sob a forma de demência (diria Bakunin) – às explicações de base científica, o homem procurou explicar o como e o porquê, as relações entre si e entre as coisas.

É pertinente expor que o desenvolvimento do pensamento racional não poderia ter ocorrido se não houvesse como acompanhamento um progressivo domínio humano sobre a natureza exterior. O pensamento de base religiosa gera um “sentimento de absoluta dependência do indivíduo passageiro em relação à eterna e onipotente natureza” (BAKUNIN, 1988, p.63). À medida que o homem passa a ser menos determinado pela natureza exterior, modifica a relação estabelecida com esta, rompendo com um mundo de fatalidades, é o momento em que o pensamento religioso, senão cede o lugar, ao menos, passa a dividir espaço nas interpretações, explicações e orientação da vida prática com o pensamento racional e científico.

Esta mudança de percepção é fundamental também para a tomada de consciência humana de que somos sujeitos de nossa própria história. Afirma Kosik (2010, p. 22) que “a realidade pode ser mudada de modo revolucionário só porque e só na medida em que nós mesmos produzimos a realidade, e na medida em que saibamos que a realidade é produzida por nós”. Mas esta realidade, construída por nós (ainda que não necessariamente percebida desta forma), é sempre produzida em certas condições.

***


Com as questões levantadas acima, é pertinente refletir e enfatizar, o caráter histórico e social do conhecimento e das teorias. Boa parte das teorias contemporâneas no universo das ciências sociais passou a girar em torno da relação/oposição entre micro x macro, ação x estrutura etc.. O pensamento clássico do século XIX, especialmente, teria girado, segundo muitas das teorias contemporâneas, apenas sob o aspecto macro e pela estrutura da realidade, negligenciando o aspecto micro, as particularidades e a ação dos indivíduos. Evidente que muitas críticas neste sentido são válidas, necessárias, e agregam em um conhecimento mais aprofundado da realidade histórico-social, seja aprimorando teorias e conceitos, seja refutando outras, alargando horizontes de análises ou apontando e tentando preencher lacunas. Todavia, como diz o ditado, temos que ter o cuidado para não jogar a água fora junto com o bebê.

Sabemos que o pensamento positivista da realidade social em muito influenciou as teorias socialistas, seja por parte dos anarquistas, seja por parte dos marxistas, produzindo teorias sociais mecanicistas e deterministas. No entanto, boa parte das teorias contemporâneas ao criticar o que seria o “objetivismo” do pensamento clássico saiu de um extremo para outro, terminando em um “subjetivismo”. Em grande parte, o anarquismo fazendo firme oposição ao autoritarismo e as burocracias, e historicamente em geral, sempre apresentando-se aberto e avesso ao dogmatismo, terminou, em parte e por razões que extrapolam os limites desse texto e exigiriam outra análise, por ser absorvido, seja mais à direita, seja mais à esquerda, por este subjetivismo e esta, digamos, indeterminação à respeito da conformação da realidade histórico-social. Numa crítica aos elementos mais à direita desta influência no anarquismo, é de particular importância registrar a crítica de Murray Bookchin (2011) ao chamado “anarquismo estilo de vida”, “primitivismo”, entre outros absurdos irracionais que são uma afronta a séculos de criação humana.

Por vezes, estas ideias estão associadas ao comumente chamado de pós-modernismo. David Harvey em Condição pós-moderna, parte da tese de que o pensamento e as práticas pós-modernas estão associados às mudanças da própria estrutura econômica-política que o capitalismo sofreu, especialmente a partir dos anos de 1970.

Seguindo os passos do estudo de Harvey (1992), o qual é acompanhando de análise das mudanças na arquitetura e nas artes, podemos definir o pós-modernismo como uma exaltação do efêmero, do fragmentário, do descontínuo e indeterminado, do caótico (HARVEY, 1992, p. 51). Assim, a tentativa de dar uma racionalidade, uma unidade ao universo, seria em vão, senão arbitrária. A dimensão histórica da ação humana acaba também neste sentido sendo marginalizada na teoria social, considerada apenas em seus fragmentos ou, mesmo, apenas considerada como uma espécie de “universos particulares”.

***



3) HOMEM E NATUREZA; IDEIA E MATÉRIA – O MUNDO HUMANO É UM MUNDO HISTÓRICO-SOCIAL

“Nas sociedades de animais todos os indivíduos fazem exatamente as mesmas coisas: um mesmo génio os dirige, uma mesma vontade os anima. Uma sociedade de animais é um conjunto de átomos redondos, curvos, cúbicos ou triangulares, mas sempre perfeitamente idênticos; a sua personalidade é unânime, dir-se-ia que um só eu os governa a todos. Os trabalhos que os animais o executam, quer individualmente, quer em sociedade, reproduzem o seu carácter traço por traço: assim como o enxame de abelhas se compõe de unidades da mesma natureza e igual valor, assim o favo de mel é formado pela unidade alvéolo, constante e invariavelmente repetido.

Mas a inteligência do homem, destinada ao mesmo tempo para o destino social e para as necessidades da pessoa é de uma factura completamente diferente e é o que torna, por uma consequência fácil de conceber, a vontade humana prodigiosamente divergente. Na abelha a vontade é constante e uniforme, porque o instinto que a guia é inflexível e é esse o único instinto que faz a vida, a felicidade e todo o ser do animal; no homem, o talento varia, a razão é indecisa, portanto, a vontade múltipla e vaga: procura a sociedade, mas foge das dificuldades da monotonia: é imitador, mas amoroso das suas ideias e doido pelas suas obras.” (PROUDHON, 1997; p. 218-19)

De saída, é preciso destacar que o homem, em sua evolução natural, desenvolveu características biológicas fundamentais para criar as condições necessárias para o seu desenvolvimento enquanto ser social. Estas características vão desde a posição de sua coluna vertebral que o possibilita andar de forma ereta, passando pelo formato de suas mãos que o permite manusear objetos com maior precisão e sua estrutura vocal que permite a emissão de sons articulados, chegando ao elevado grau de complexidade e especialização neurocerebral que desenvolveu.

Sob estas condições de evolução natural o gênero humano pôde transformar-se em um ser social e nesta qualidade o diferencia dos demais seres por passar a apresentar novas determinações em seu devir histórico. A existência de coletividades e de organização, que se nos for permitido a licença do termo, de “sociedades”, é constatada em outros seres, não somente humanos. Insetos como abelhas e formigas formam grandes coletividades com divisões de funções.

Porém, ao contrário do ser humano enquanto ser social, estes animais são determinados substancialmente em função de sua carga genética e herança biológica. São estes elementos que definem seus padrões de comportamento, padrões estes que são resistentes ao tempo e ao espaço. Assim, o que uma abelha ou uma formiga fazem hoje é basicamente o mesmo que fazem a milhares de anos. A situação repete se pegarmos animais de uma mesma espécie e situados em locais diferentes, sem contato um com o outro: seus padrões de comportamento serão similares. Assim, a relação dos animais não humanos com o meio, com a natureza (exterior), não é de transformação, é no máximo de adaptação.

Por sua vez, o homem, transformado em ser social, experimentou diversas formas de organização social, tal como diferentes padrões de comportamento. Se há também a permanência, por outro lado, destaca-se e distinguem-se, as mudanças e transformações ocorridas no tempo e no espaço na sociedade humana. Nesse sentido, o aprendizado e as determinações de sua sociabilidade adquirem o fator primordial para definir os padrões de comportamento do homem.

Nesse sentido, colocamos a discussão das determinações do SER SOCIAL e do TRABALHO como elementos básicos para compor uma base teórica que põe homens e mulheres enquanto criadores e criaturas de seu próprio mundo, um mundo histórico-social. Não há destino, seja de paraíso terreno, seja de escravidão eterna. A sociedade é desnaturalizada e sua transformação revolucionária não abriga mais apenas o campo da vontade, mas também enquanto possibilidade real teoricamente visualizada. Para tal, retomamos algumas contribuições presentes tanto em Proudhon quanto em Bakunin, discussões que muitas vezes não tem o merecido destaque no corpo de ideias destes autores e do próprio anarquismo, ainda que apareçam com destaque em seus escritos.

Para Proudhon, trabalho é a “força plástica da sociedade”. O define como a “ação inteligente do homem com um fim de satisfação pessoal” (s.d., p. 256-7). Para ele esta é uma característica marcante, na qual está a grande diferença e “superioridade” perante os demais animais no sentido de garantir a produção e reprodução de sua vida social. A inteligência que pode ser atribuída aos animais, não os permitem “modificar as operações dos instintos”, assim como saber melhor lidar com os “acidentes imprevistos” (Proudhon, 1997, p. 222). O homem, vivendo em sociedade e criando os materiais e os meios de sua existência, transforma continuamente sua ação instintiva em refletixa.

O homem, então, é o animal que trabalha. Mas, para Proudhon, trabalho não é qualquer atividade humana. Forma parte do trabalho a matéria, o instrumento e a inteligência/subjetividade humana. O primeiro instrumento do homem é o seu próprio corpo, como suas mãos. A partir delas e da matéria em que atua, tem-se a criação de “instrumentos fictícios” (s.d., p. 258).

Os animais, por sua vez, não empregam outros instrumentos que suas unhas, dentes, patas e estômago, obedecendo essencialmente a instintos. É de conhecimento que algumas espécies de animais, sobretudo aquelas mais próximas geneticamente dos humanos, chegam a construir algum tipo de objeto para facilitar o seu “trabalho”. Porém, há um aspecto que se distingue essencialmente nos homens e faz do trabalho humano um trabalho criador. Dizia o francês que a ação que o homem exerce sobre a matéria, converte esta, ao mesmo tempo, em instrumento e obra. E não somente, pois a associação estabelecida entre os homens é qualitativamente diferente da dos animais, uma vez que o homem só realiza suas potencialidades em sociedade (s.d.; 1997).

Na mesma linha de raciocínio seguia Bakunin. Há algumas diferenças, mais de ordem “terminológica” do que propriamente epistemológica. Na verdade, Bakunin refere-se a trabalho alargando o seu conceito. De todo modo, o trabalho é posto por Bakunin como uma atividade vinculada a condição de existência, o “fundamento de qualquer vida orgânica” (1988, p. 70). Quando escreve as Considerações filosóficas... ou Federalismo, Socialismo e Antiteologismo considera o trabalho condição de toda a vida animal. No entanto, compreende que a humanidade não realiza qualquer trabalho. Nela o trabalho vira um “trabalho inteligente e livre”.

Toda vida animal tem como condição primária de sua existência a luta pela vida. Essa luta é tanto entre espécies, como contra a própria natureza. Assim, necessita-se não somente de garantia para suprir com as necessidades básicas e fisiologicamente vitais, mas também proteger-se da ameaça externa vinda seja de outras espécies quanto da própria natureza exterior (chuva, frio etc.). Coloca-se em relevo outra questão: qual a relação que a Natureza (exterior) possui com o homem e os demais animais?

Para Bakunin, o trabalho (a luta pela vida) só passa a ser uma atividade propriamente humana a partir do momento em que este “serve à satisfação não somente das necessidades fixas e fatalmente circunscritas da vida exclusivamente animal, mas ainda daquelas do ser pensante, que conquista sua humanidade ao afirmar e realizar a sua liberdade no mundo” (1988, p. 71). É quando o ser humano passa a sair de uma condição de bestialidade e entra no “mundo propriamente humano”, um mundo histórico. Sublinhamos que essa passagem é um ato prático, uma conquista material, não é apenas uma tomada de consciência no vazio.

É necessário abordar dois elementos fundamentais, característicos do ser humano, e que nos permitem retomar a um diálogo mais preciso com a longa passagem de Proudhon, citada na abertura deste tópico. A vida humana aparece como a continuidade da vida animal, acrescida das faculdades de pensar e de falar. São especialmente elas que permitem ao homem estabelecer uma relação distinta na natureza. A partir destas faculdades é possível construir noções entre as coisas, as quais são base para a formulação de ideias. Os animais também expressam reações e noções, mas estas são de ordem material, não ideal.

O que acrescentamos é a constatação da existência de uma subjetividade humana. Daí Proudhon é feliz ao assinalar a variedade de talentos, vontades e compreensões (razão) presentes na sociedade. Esta subjetividade só ganha formas e multiplicidades na medida em que lhe é permitido “comparar, criticar e ordenar suas próprias necessidades” (1988, p. 69) numa ação reflexiva. Atentamos para a caracterização que Bakunin dava ao pensamento e a fala. Não se trata de pressupostos inatos ao ser humano. Afirmava estes serem “potências em absoluto formais”. O próprio fato precede a ideia. As ideias são sempre dadas pela “experiência reflexiva das coisas reais”. Por isso, esta subjetividade continua a ser construída, especialmente, mas não unicamente, a partir das complexificações das determinações do trabalho, das condições materiais de existência.


4. QUESTÕES SOBRE PODER E DOMÍNIO

A luta de classes que atravessa a história da humanidade, desde que se constituiu assim, é impulsionada por polos antagônicos que, movidos por seus referenciais ideológicos, procuram disputar a forma como a sociedade se organiza. Sabendo que não há neutralidade, entendemos que todo posicionamento e ação dentro da estrutura social tende para manutenção da ordem vigente (a manutenção da desigualdade social) ou tende para sua ruptura (a busca da justiça social), direta ou indiretamente.

As relações de poder existentes entre os diversos grupos sociais estarão presentes no âmbito da economia, da política e da cultura. Por um lado, para que os privilégios da classe dominante sejam mantidos (baseados, fundamentalmente, na desigualdade econômica), há a apropriação por essa mesma classe de mecanismos que possibilitam o exercício do poder a partir dos três elementos supracitados. Por outro lado, nesse mesmo processo histórico de construção das relações de poder, há resistência do polo oprimido que busca, por meio de seu projeto de poder, romper com essa opressão. Não obstante, é importante considerar que tais relações de poder, implicados nestes elementos (econômicos, políticos e culturais) se autodeterminam e sofrem adaptações em diferentes momentos históricos, porém, sempre mantendo as desigualdades sociais.

Diante disso, pode-se dizer que o poder se manifesta no próprio espaço relacional (entre indivíduos, grupos, classes, etc.). Isto é, há uma disputa pelo poder entre sujeitos historicamente determinados perpassando todas as relações sociais existentes. Essas relações são próprias da humanidade e existirão independentemente da conformação social em que ela se encontra, manifestando-se com as particularidades inerentes a cada momento histórico. A defesa de uma opinião, as estratégias usadas para que ela seja aceita pelo conjunto social e se tornar uma verdade estão no âmbito relacional, portanto na disputa de poder. Pode-se assim conceituá-lo de diversas formas.

Conceituar o poder como capacidade implica concebê-lo como “ter poder de fazer algo” ou “ter poder para algo”; o poder, neste sentido, define-se a partir de uma capacidade de realização ou uma força potencial que poderia ser aplicada em uma relação social determinada. O segundo caso, do poder como assimetria nas relações de força, implica um conceito que, ainda que esteja ancorado na noção de capacidade explicitada na primeira acepção, não pode resumir-se a ele. Neste caso, o cerne da definição está nas assimetrias das diferentes forças sociais que se encontram em uma determinada relação social; quando essas forças, com capacidades distintas de causar efeitos sobre outras, põem-se em interação, forjam os efeitos sobre um ou mais polos da relação. Conceber o poder como estruturas e mecanismos de regulação e controle implica conceituá-lo a partir do conjunto de regras de uma determinada sociedade, que envolve tanto as tomadas de decisão para seu estabelecimento e para definir seu controle, quanto a própria aplicação desse controle; uma estruturação social que exige instâncias deliberativas e executivas (CORRÊA, 2013).

Desde que a sociedade passa a ser dividida em classes sociais, as relações de poder ganham uma nova significação nessa forma de se organizar. As que são típicas das sociedades dividida em classes podem ser denominadas como domínio. Na esfera relacional, isso aconteceria quando determinado grupo utilizaria a força social do outro grupo a seu favor e contra os interesses do polo dominado na relação de poder.

A distribuição desigual do que foi produzido marca a sociedade dividida em classes, e a capacidade de utilizar os conhecimentos humanos e o maior ou menor poder de decisão define a sua posição mais próxima ou mais afastada do polo dominante dessa sociedade. A categoria de dominação englobaria o econômico, mas precisaria de outros elementos para explicar as relações sociais (ERRANDONEA, 1989 apud CORRÊA, 2013).

Para que a relação de dominação se estabelecesse em favor de uma pequena minoria na humanidade foi necessário que fosse legitimada perante o próprio polo dominado, e que a maioria da população passasse a desejar esse mecanismo social ou que não concebesse outra forma de organização da sociedade. Para isso foi necessária a estruturação de outras relações de poder no âmbito cultural – a construção de uma cultura de submissão, o sistema escolar tradicional, a força das religiões, entre diversas outras questões. Politicamente, o Estado detentor do aparato coercitivo e dos aparelhos burocráticos que organiza a vida em sociedade cumpriu o mesmo papel.

Para construir essa dominação é preciso complexos mecanismos que possam naturalizar uma vontade de obediência por parte dos dominados, que partirá de algo legítimo consolidado para além das normas jurídicas. Uma mescla de convencimento com coerção física. Cria-se um consenso na humanidade que permite a minoria se perpetuar no controle e faz com que a maioria assimile a dominação como algo normal e que faz parte da vida. A partir dessas condições e do consenso criam-se as condições necessárias para a institucionalização da dominação e ela se manifesta, por exemplo, não só pela exploração econômica, mas pela própria coerção física e pelas instituições político-burocráticas (ROCHA, 2009).

A conformação do jogo de interesses dentro dessa sociedade socialmente injusta é movida pelas relações ideológicas, que se dão no campo relacional, sendo, portanto, relações de poder. Por conseguinte, essas relações de poder que buscam a manutenção de um sistema de desigualdades sociais podem ser denominadas como relações de domínio. Essas ideologias são formadas em relação com o mundo material. Só foi possível uma relação de poder se conformar em domínio e termos toda uma ideologia trabalhando para a manutenção dessa relação porque a evolução da humanidade permitiu que certos grupos minoritários vivessem à custa da exploração da maioria.

A ideologia de resistência a essa relação de domínio é fruto da maneira como os dominados foram se conformando e de tudo a que foram submetidos para que se criasse uma vontade de superar o estado de coisas imposto. Não obstante, a ideologia anarquista é uma das ideologias que nasceram no bojo desse desejo de mudanças, apontando para outra forma de organização da sociedade. Por isso, as ideologias são carregadas de materialidade, tem relação com o mundo material, com o momento histórico em que foram desenvolvidas.

De fato, não se poder compreender todas as relações de poder tomando por base somente as classes sociais como categoria de análise, muito menos que o único elemento originário dessas relações é o elemento econômico. As relações humanas são muito variadas e complexas, coexistindo uma série de particularidades, as quais não é possível explica-las puramente pela via econômica.

Voltando-nos para o campo das micro relações humanas, Focault desenvolveu teorias e observou aspectos que fogem à tradicional explicação das correntes socialistas. Tal conhecimento é significativo para se entender o mundo, entretanto insuficiente para se buscar a superação do modelo de sociedade vigente, na perspectiva de uma sociedade justa, equânime e livre. A evolução da sociedade está marcada pelo desenvolvimento de inúmeras maneiras de como organiza-la a partir das relações econômicas. Isto nos leva à conclusão de que, ao prendermo-nos somente no entendimento das micro relações sociais seremos incapazes de compreender o todo. As macrorrelações não são um mero somatório de tudo o que ocorre no espaço microrrelacional. Para aqueles que abraçam uma ideologia que pretende emancipar a humanidade da dominação, é preciso observar os fatores centrais que marcam essas relações de domínio. Somente a partir daí o entendimento das relações nos microespaços ganham sentido para quem pretende construir um projeto que supere essa forma de organizar a sociedade em que vivemos.

Os elementos econômicos, políticos e culturais coexistem e podem ser determinados mutuamente a favor do projeto de sociedade hegemônico. Não obstante, concebemos que os elementos econômicos são os primordiais para o entendimento de como as relações opressor/ oprimido, explorador/ explorado, dominador/ dominado configuram-se no seio dessa sociedade – e das anteriores a esta. Apesar de não poderem explicar todos os fatos sociais ele é central, uma vez que esses elementos podem se conformar de maneiras diferentes, de acordo com mudanças ocorridas nos elementos culturais e políticos. Isso ganha força quando pensamos o porquê disso tudo. Quando vemos como a sociedade de classes foi sendo construída, observamos o peso que o econômico tem em relação aos demais. Qual a necessidade do Estado, do poder coercitivo se não o de garantir que uma minoria fique com a maior parte da riqueza humana? Qual a finalidade de um sistema cultural opressor se não for manter essas relações de classe?

Não negamos que diversos outros elementos são importantes para entender o mundo e que, realmente, o plano econômico não é suficiente para o entendimento de todas as relações de classe. Mas qual outro elemento poderia ser usado com importância parecida ao econômico? Qual elemento seria transversal a todas as categorias de análise da sociedade? As elucidações perderiam seu poder de análise e não encontrariam a saída desse sistema de dominação. Quais exemplos poderíamos dar de alguma relação macrossocial que o econômico não seja o elemento central e basilar da explicação, uma vez que as micro relações são insuficientes para quem pretende encarar um projeto de mudança ampla? Perder-nos-íamos num labirinto de ideias sem nunca achar saída. E essas ideias são fundamentais, mas só ganham potência quando se agregam numa estrutura maior de entendimento.

Acreditamos na possibilidade de uma sociedade onde as relações de poder não possam ser definidas como uma relação de dominação e que o homem é produto do meio em que vive. É esse meio que queremos mudar, para que seja produzido um novo homem. Mas, ao mesmo tempo, ele só é mudado com os esforços desse mesmo homem.

Para construirmos as mudanças sociais que queremos temos que superar as relações de domínio. A ideologia anarquista preconiza uma forma de organização social em que o conjunto da sociedade participe do planejamento e da construção dessa sociedade e que os esforços de ninguém sejam usados contra seus próprios interesses. Certamente, isso não anula as disputas, nem vitórias ou derrotas de interesses, mas tudo seria mediado por uma perspectiva individual e coletiva em constante relação, superando o individualismo marcante do capitalismo.

O próprio sistema capitalista criou as condições para que fosse possível o desenvolvimento da ideologia anarquista, não mecanicamente. Sua superação também não é dada. Esse objetivo só será possível se a ideologia que aponte para essa ruptura seja propagada de maneira ampla dentro das classes oprimidas e essas passem a desejar e trabalhar por essas mudanças. A constatação das desigualdades econômicas e a busca por sua superação são os fatores que mais contagiam. Para isso é preciso que durante a própria luta mudemos certos mecanismos culturais e lutemos contra o Estado. Uma coisa não ocorre de maneira cartesiana, uma depois da outra, mas a compreensão de como se organiza a sociedade é fundamental no projeto de transformação da realidade.


5. CAPITALISMO: ELEMENTOS BÁSICOS E SUA LÓGICA DE DOMINAÇÃO

5.1 Os inimigos de sempre e os mecanismos de hoje

Os nossos inimigos nem sempre se apresentaram da mesma forma, nem mesmo se utilizaram dos mesmos mecanismos, ou então, poderíamos dizer que se utilizaram de um mesmo mecanismo primário de exploração do trabalho e de dominação sob variadas maneiras. São nossos inimigos – e assim os identificamos ao longo dos tempos, mesmo que sob nomes e formas diferentes – porque promoveram a exploração, a opressão e delas, tiraram proveito.

Os nossos inimigos já se chamaram de aristocratas, de nobres, de senhores, entre outros. Seu sistema de dominação já foi denominado como feudalismo, regime escravista, entre outras variantes exploradoras. Os inimigos de hoje atendem pelo nome de burguesia (industrial, financeira, latifundiários, etc.) e o sistema por ela organizado: o capitalismo. Seus mecanismos, em constante operação e cada vez mais articulados com uma rede de meios e instrumentos de dominação, são identificados no Capital e no Estado. É a exploração econômica e a dominação sociopolítica que se fundem e se configuram para benefício de uma minoria.

5.2 O Estado e o Capital: o poder que vem dos ricos e para os ricos

“O que são a propriedade e o capital em sua forma contemporânea? Para o capitalista e o proprietário, significa o poder e o direito, garantidos pelo Estado, de viver sem trabalhar. E posto que nem a propriedade, nem o capital nada produzem sem estarem fertilizados pelo trabalho, isto significa poder e direito para viver explorando o trabalho de outro. Direito a explorar o trabalho de quem não tem nem propriedade nem capital e, portanto, se encontram forçados a vender sua força produtiva aos afortunados proprietários” (Bakunin).

O sistema capitalista é fundado sob a base de um regime de propriedade privada dos meios de produção (terra, instrumentos de trabalho etc.). Segundo a ideologia que o sustenta, os trabalhadores são livres. No entanto, pensamos como Bakunin, que “o direito à liberdade, sem os meios para realizá-la, é apenas uma quimera”. Os trabalhadores, roubados dos meios concretos para que possam garantir sua sobrevivência, se veem obrigados a vender sua força de trabalho para a classe dominante. Esta é a condição e o fermento para a manutenção de um sistema que garante a apropriação de lucros à burguesia e que divide seus prejuízos com os trabalhadores, que pagam ainda a conta mais alta. Para esta operação os capitalistas sempre encontraram no Estado o apoio político-militar e também financeiro, necessário para prosseguir com seus projetos.

As formas de acumulação de riqueza e exploração do trabalho de outrora e as do capitalismo do século XXI, mudaram bastante, atravessando vários períodos e fases: já foi mercantilista, colonialista, passando a monopolista e atualmente imperialista e ultra-monopolista. Mas a sua orientação – também na gênese do capitalismo – permaneceu sempre a mesma. A centralização econômica e política caracteriza o seu modelo e estrutura a sociedade. No decorrer desse processo que concentra riqueza e distribui miséria, um complexo sistema de dominação evoluiu, tanto em seus meios materiais e repressivos, quanto científicos e ideológicos.

Ocorre que a ligação existente entre as esferas econômicas e políticas são estreitas e difíceis de delimitar território. Por isso, quem controla os meios de produção exerce controle também sob os indivíduos. O Estado vai atuar não somente como elemento de contenção entre Capital e Trabalho – ou, entre a burguesia e os trabalhadores – mas também como um agente econômico ativo importante, que organiza e administra sob o leme da classe a qual representa: a burguesia e suas variadas frações. A centralização é a tendência inevitável a se realizar pelo Capital e pelo Estado. É por isso, que no desenvolvimento da dominação burguesa, a concentração de empresas ou grupos empresariais, banqueiros etc., vem junto com o próprio estreitamento dos mecanismos decisórios.

Na mesma medida em que nos deparamos com uma realidade mundial de concentração de riqueza em poucos países, no Brasil também presenciamos uma exorbitante concentração desta na região Sudeste/Sul do país, em especial São Paulo. Os recursos a serem destinados e a organizar e financiar essas disparidades tem na centralização dos poderes a sua realização e reprodução. Por isso, identificamos no Estado e no Capital o poder que vem dos ricos e para os ricos.

5.3 A política e a ideologia burguesa: dominar e fragmentar

Clássicos do anarquismo, como Bakunin e Malatesta, afirmavam que a situação econômica era a situação real. Por isso, as formalidades jurídicas viram ficção, pois o trabalhador não está em iguais condições que o seu patrão. Isso se reflete no limitado acesso à educação, cultura e saúde. Assim como, uma dominação ideológica, potencializada por diversos instrumentos utilizados, desde a educação formal, a cultura propagada ou apropriada pela elite, passando pela grande mídia. Essas leis sendo ficções, o cumprimento delas tende a ser executado somente no benefício das elites, que as elaboram e sancionam.

As conquistas que são transcritas na forma de lei, foram resultados de mobilizações e lutas para tal, assim, o respeito a elas não é a lei sozinha que a faz, e sim, a permanência da luta e a construção ideológica que coíbe práticas contrárias. Um dos mecanismos que mais põe às claras a política e a ideologia burguesa está nas eleições para os cargos do poder executivo e legislativo do Estado. O chamado sufrágio universal (as eleições parlamentares) ainda que seja contemporâneo à ascensão da burguesia à classe dominante, a partir de meados do século XVI, nem sempre foi o escolhido por ela. A presença de ditaduras e golpes sempre marcou a dominação burguesa, percorrendo desde a França de Bonaparte às ditaduras latino-americanas por volta da década de 70 do século passado. Daí, associar liberalismo com Estado democrático pode virar um grande engodo.

O chamado regime democrático, em tese, garante a liberdade de organização e imprensa, possibilita uma elevação à vida pública, o que permite maior tranquilidade na organização e mobilização dos trabalhadores. Assim, ele é certamente preferível a um regime ditatorial. No entanto, não faz parte de nossa teoria semear enquanto política dos trabalhadores a política que é na verdade burguesa, ancorada naquilo que os anarquistas tradicionalmente classificaram como a “ilusão do sufrágio universal”, sempre se opondo a cair no jogo parlamentar.

Cabe o exemplo de Proudhon, que chegou a assumir cadeira legislativa na França (1848), mas constatou que nesta condição, estava cada vez mais distante do povo e do que acontecia nas ruas. Desde então, lutas foram travadas e como orientação ideológica determinou-se a centralização dos esforços e energias na mobilização direta dos trabalhadores, a partir dos seus próprios espaços (trabalho, moradia, etc.). O que está no centro da discussão é a construção de uma política própria dos trabalhadores, que está diretamente vinculada à percepção e confiança em sua força, na construção de sujeitos históricos ativos, conscientes e convictos do seu papel. Confiança esta, que só pode ser ganha a partir do momento em que estes trabalhadores não só lutam, mas também decidem, exercem protagonismo. E o Estado só pode, e assim sempre o fez, mesmo quando dirigido por ex-trabalhadores – que ao mudarem de posição, mudam de perspectiva – continuar a representar os interesses da burguesia, no sentido de confundir, dispersar e fragmentar a força dos trabalhadores.

Desse modo, a política e a ideologia burguesa, seja sob qual manto busque refúgio (ditadura ou democracia), tem como objetivo dispersar a força do povo, que a tem justamente por ser povo, por não viver de parasitismo. A burguesia usa também da dominação para fragmentar, seja quando é feito a base do cassetete e pau de arara, seja quando articula sob um verniz de legalidade. E quando foi preciso, ela nunca pestanejou em romper com esta legalidade. Portanto, não há fim da exploração econômica, sem o fim da dominação político-ideológica.

Queremos construir outra sociedade, onde não existam mais classes sociais, pois todos contribuiriam na construção da riqueza da sociedade e desfrutariam dela em igual medida. Entendemos que esta mudança não é mecânica, nem poderia ser, pois se trata de pessoas que vibram, sentem, choram, pensam e agem numa civilização construída não somente na base da exploração, mas também produzindo uma dominação branca, machista e repressora da orientação sexual. Ou seja, pessoas de diversos lugares, com suas singularidades e formas de externá-las.

Portanto, entendemos que contribuir para desencadear um processo revolucionário é dar a força do povo, ao próprio povo. Possibilitar aos trabalhadores e trabalhadoras que eles/as, em cada canto, possam ter voz e efetivamente construam seu destino, com sotaque e maneiras diferentes de construir seu poder: o Poder Popular, que nasce do povo e é exercido por ele.

5.4 Centro e periferia

Uma maneira de se entender o funcionamento desse sistema seria utilizando dos conceitos de centro e periferia trabalhados por Rudolf de Jong (2008). Existe um centro que domina e uma periferia que é dominada. No centro encontraríamos o polo irradiador dos consensos que mantém a perpetuação dessa dominação; e na periferia, teríamos a resistência em potencial a essa dominação. Entender o mundo por essa lógica e assumir a postura ideológica de estar do lado dos oprimidos é buscar conhecer a realidade em uma perspectiva emancipadora. A divisão de centro e periferia não é apenas algo relativo à política internacional (entre países) ou regionalmente (dentro de uma cidade e suas diferentes áreas), mas, sobretudo, entre classes sociais, ou seja, relações de centro e periferia também ocorrem dentro de países centrais.

Observamos que os centros tendem a ser mais uniformes e as periferias tendem a ter suas particularidades. O projeto do centro é a dominação da periferia e fazer com que ela funcione de acordo com as suas regras e mantenha os pilares do capitalismo que permitem uma minoria se manter na posição privilegiada dessa sociedade. As regras criadas para manutenção do sistema de opressão (no caso o capitalismo) precisam se reproduzidas em todos os aspectos da vida em sociedade. Como o capitalismo é o projeto dos centros, as periferias precisam seguir suas regras para poderem perpetuar a lógica do domínio, por isso tendem a assumir um projeto de uniformização.

Percebemos isso desde a forma como se organiza a produção e distribuição de riqueza no mundo, que seguem regras internacionais parecidas, até as manifestações culturais de uma cultura pop internacional que tende a padronizar os gostos das populações. De fato, há uma tentativa de uniformização das periferias no capitalismo. Entender suas particularidades é fundamental para se superar o estado de coisas. Apostar num projeto federalista libertário em escala regional, nacional e internacional, com autonomia e protagonismo das bases, é uma saída para a superação deste modelo.


6. REFERÊNCIAS
BAKUNIN, Mikhail. Federalismo, socialismo e antiteologismo. São Paulo: Cortez, 1988.
BAKUNIN, Mikhail. O princípio do Estado / Três conferências... Brasília: Novos Tempos, 1989.
BAKUNIN, Mikhail. Obras v. 3. Madrid: Jucar, 1977.
BAKUNIN, Mijail. Escritos de filosofia politica. Madrid: Alianza Editorial, 1990.
BAKUNIN, Mikhail. Estatismo e anarquia. São Paulo: Imaginário, 2003.
BAKUNIN, Mikhail. Escritos contra Marx. São Paulo: Imaginário, 2001.
BAKUNIN, Mikhail. Deus e o Estado. São Paulo: Imaginário, 2000.
BOOKCHIN, Murray. Anarquismo, crítica e autocrítica. São Paulo: Hedra, 2010.
CORRÊA, F. Anarquismo, Poder, Classe e Transformação Social. Anarkismo.net, nov. 2013. Disponível em: http://www.anarkismo.net/article/26402. Acesso em 13 de agosto de 2014.
HARVEY, David. Condição pós-moderna. 21ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2011
JONG, R. A Concepção Libertária da Transformação Social Revolucionária. São Paulo: Faísca Editora, 2008.
KOSIK, Karel. A dialética do concreto. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010.
PROUDHON, P-Joseph. O que é a propriedade?. Lisboa: Estampa, 1997.
PROUDHON, P-Joseph. La creación del orden en la humanidad. Valencia: F Sempere y Compania, s.d.
ROCHA, B. L. Abordando o conceito de dominação – 1. Estratégia e Análise, jun. 2009. Disponível em: http://estrategiaeanalise.com.br/ler02.php?idsecao=e8f5...5c472. Acesso em: 13 de agosto de 2014.

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Está dado mais um passo no avanço do Anarquismo Especifista no Nordeste do Brasil. Reunidos em Recife, nos empenhamos em aprofundar o debate sobre o especifismo e estruturação dos agrupamentos políticos em nossa região, com vistas ao nosso fortalecimento e consolidação. [English]

faoimagem.jpg imageRelato do Encontro de Formação do Fórum do Anarquismo Organizado - Regional Sul 01:18 Thu 22 Mar by Fórum do Anarquismo Organizado 0 comments

Nos dias 17 e 18 de março de 2012 aconteceu em Florianópolis/SC um encontro de formação da região sul do Fórum do Anarquismo Organizado (FAO) [English]

fao.jpg imageFormação do Núcleo Joinville 19:47 Wed 29 Feb by Coletivo Anarquista Bandeira Negra 0 comments

No dia 11 de Fevereiro de 2012, militantes da Organização Dias de Luta, de Joinville/SC, reuniram-se com membros do Coletivo Anarquista Bandeira Negra (CABN), de Florianópolis, com o objetivo de aproximar as duas organizações. Decidimos então que a Organização Dias de Luta deixa de existir e as duas organizações a partir de então reúnem-se no Coletivo Anarquista Bandeira Negra, que passa a possuir dois Núcleos: Joinville e Florianópolis. [English]

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imageManifesto Comunista Libertário Jan 18 by Georges Fontenis 0 comments

COMUNISMO LIBERTÁRIO: UMA DOUTRINA SOCIAL
A QUESTÃO DO PROGRAMA
RELAÇÕES ENTRE AS MASSAS E A VANGUARDA REVOLUCIONÁRIA
I – Necessidade da vanguarda
II – Natureza do papel da vanguarda revolucionária
III – De que forma pode ser exercido esse papel de vanguarda revolucionária?
PRINCÍPIOS INTERNOS DA ORGANIZAÇÃO REVOLUCIONÁRIA OU PARTIDO
I – Unidade ideológica
II – Unidade tática, método coletivo de ação
III – Ação coletiva e disciplina
IV – Federalismo ou democracia interna
O PROGRAMA COMUNISTA LIBERTÁRIO
I – Aspectos da dominação burguesa: o capitalismo e o Estado
O capitalismo
O que é o capitalismo?
O Estado
II – As características do comunismo libertário
Comunismo: da fase inferior à fase superior ou comunismo perfeito
Comunismo libertário
Comunismo libertário e humanismo
III – O fato revolucionário: a questão do poder e do Estado
O que é a revolução?
O período de transição
A ditadura do proletariado
O poder operário direto
A defesa da revolução
Poder revolucionário e liberdade
O papel da organização anarquista específica e o papel das massas
IV - A moral comunista libertária
Nós combatemos as morais
Nós temos uma moral?
Nossa moral

imageComunicado Sobre Nossa Saída da CAB Dec 16 by OASL, FARJ, RUSGA LIBERTÁRIA E COMPA 3 comments

Comunicamos que, depois de um longo processo de discussão – que envolveu toda a Coordenação Anarquista Brasileira (CAB) e a Coordenação Anarquista Latino-Americana (CALA) –, a Organização Anarquista Socialismo Libertário (OASL, de São Paulo), a Federação Anarquista do Rio de Janeiro (FARJ), a Rusga Libertária (RL, de Mato Grosso) e o Coletivo Mineiro Popular Anarquista (COMPA, de Minas Gerais) tomaram a decisão de sair da CAB.

textDesmintiendo al "Anarco-Capitalismo" May 27 by Organização Anarquista Socialismo Libertário 1 comments

Algunas décadas atrás no habría ninguna duda a cerca de la afirmación de que el anarquismo es una ideología socialista y de izquierda y que el término “libertario” (y sus variaciones) pertenecen a esa tradición política. Infelizmente, de unos tiempos hacia acá en Brasil, se viene popularizando el absurdo llamado “anarco-capitalismo” como reivindicación de ese término por grupos de derecha. Toda vez que algún post nuestro se viraliza por internet, recibimos innumerables comentarios de jóvenes creyendo que es la mayor incongruencia hablar de anarquismo como parte del socialismo, y de socialismo libertario, etc.

imageLe regroupement de tendance Jun 06 by Felipe Corrêa 0 comments

La tendance est une organisation que nous pourrions appeler de politico-sociale, en d'autres termes, c'est une organisation qui regroupe des secteurs populaires qui possèdent une affinité en relations aux questions méthodologiques et programmatiques, mais qui ne possèdent pas nécessairement des affinités en relation à une certaine idéologie (marxisme, anarchisme, autonomisme, etc.). La tendance, donc, n'est pas une organisation politique (parti) ni, non plus, une organisation de masses (mouvement populaire) ; elle existe à un niveau que nous pourrions appeler d'intermédiaire, entre le politique et le social. La tendance réunit des militant.e.s qui agissent dans un ou plusieurs mouvements populaires et dans les secteurs désorganisés de la population avec pour objectif de promouvoir à l'intérieur des mouvements dans lesquels ils/elles sont actifs/ves une méthodologie de travail et un programme déterminé, en plus d'organiser ces mouvements dans les secteurs les plus divers du peuple qui pour l'instant sont désorganisés. En plus de cela, la tendance offre un espace d'interaction entre les diver.e.s militant.e.s qui partagent des visions proches et sert a augmenter la force sociale de son incidence dans le camps populaire, augmentant son pouvoir d'influence dans ce camps et empêchant que d'autres personnes ou regroupements, qui possèdent des conceptions contraires, puissent faire prévaloir leurs visions et user d'autres militant.e.s pour atteindre leurs objectifs propres. La tendance donne de la cohérence opérationnelle aux militant.e.s qui agissent avec des objectifs clairs et bien définis et constitue la « face » du militantisme quotidien dans le travail social. Contrairement a aspirer à être l'avant-garde des mouvements, elle a la fonction de ferment et de moteur ; elle doit stimuler les mouvements populaires, garantir qu'ils possèdent la capacité de promouvoir leurs propres luttes, tantôt revendicatives (court terme), comme transformatives (long terme). Les militant.e.s de la tendance font partie intégrante du peuple et promeuvent le protagonisme populaire, en d'autres termes, ils et elles ont pour objectif de créer un peuple fort.

imageRevista Socialismo Libertário 3 Mar 16 by Coordenação Anarquista Brasileira (CAB) 0 comments

Terceiro número da revista Socialismo Libertário, publicada pela Coordenação Anarquista Brasileira (CAB). Veja aqui link para baixar a revista e para os artigos!

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textComunicado da CAB às organizações amigas e parcerias de luta Feb 01 Coordenação Anarquista Brasileira 0 comments

Comunicado sobre a saída de organizações da CAB e a manutenção do projeto de organização nacional do anarquismo especifista no Brasil.

imageComunicado da CAB sobre a saída d'organizações Jan 22 CAB 0 comments

a CAB informa

imageMensagem ao Congresso Fundacional da Coordenação Anarquista Brasileira Jun 01 FAG 0 comments

O anarquismo organizado no Brasil viverá nos dias de junho, no Rio de Janeiro, seu maior acontecimento histórico contemporâneo. O Congresso Anarquista que reunirá grupos de cerca de 10 estados do país em debates, acordos e resoluções para atuar em princípios e táticas comuns sobre a realidade brasileira tem um significado muito especial. Nossa convicção, em mais de 10 anos de processo, diz que o anarquismo militante tem irrenunciáveis aportes para as lutas por uma mudança social anticapitalista. [Français] [Ελληνικά]

image10 anos do Fórum do Anarquismo Organizado. May 10 FAO 0 comments

No início de 2002 recomeçava de forma mais lúcida um processo de articulação nacional para o anarquismo organizado e com inserção social no Brasil. Há dez anos foi criado o Fórum do Anarquismo Organizado (FAO), com o objetivo de articular grupos regionais e também lutar pela construção de uma organização anarquista brasileira dotada de projeto político comum. De lá pra cá, conseguimos fazer avançar esse processo com a consolidação de organizações especificamente anarquistas em alguns estados.

textCarta de saudação pelos 10 anos de história e luta do CAZP Apr 19 ORL 0 comments

Nos próximos dias 13 e 14 de abril o Coletivo Anarquista Zumbi dos Palmares (CAZP) comemora dez anos de história! Para nós da Organização Resistência Libertária (ORL) isso é motivo de muita alegria e comemoração. É um momento de afirmação da memória de luta construída por uma organização irmã, que compartilha conosco uma militância libertária há alguns anos, mantendo relações de solidariedade e troca de experiências militantes.

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